George Floyd, um ano depois: qual o efeito das cenas de violência racista nas vidas das pessoas negras? Uma psicanalista explica

Enviado por / FontePor Pâmela Dias, da Celina

Há exatamente um ano, o americano George Floyd foi assassinado brutalmente por Derek Chauvin, policial branco que, por mais de nove minutos, manteve o joelho sob o pescoço da vítima, mesmo após ouvir inúmeras vezes a frase “eu não consigo respirar”. Toda a ação foi filmada e rapidamente os protestos começaram nos EUA. Em poucos dias, ultrapassaram fronteiras e, em algumas semanas, já era evidente que acabava de começar a maior mobilização contra o racismo desde a morte de Martin Luther King. Mas, para o caso ganhar notoriedade, foi exposta exaustivamente uma dor recorrente entre a população negra: a de terem no imaginário social apenas imagens de seus corpos sendo violentados sem nenhum pudor.

Para a doutora em psicologia social e psicóloga do Instituto AMMA Psique e Negritude, Clélia Prestes, a repetição constante das cenas de violência pode causar traumas psicológicos e sociais à pessoa negra. De acordo com ela, que também é especialista em psicologia clínica psicanalítica, ao mesmo tempo em que é preciso não se calar em situações como a ocorrida com George Floyd — e em tantos outros casos que acontecem diariamente no Brasil —, colocar em matérias de jornais, televisão e redes sociais apenas imagens negativas faz com que negros e negras não se vejam em papel de protagonismo. Além disso, acaba se tornando um meio pelo qual a violência é naturalizada e rapidamente esquecida, pois “existem privilégios que se sustentam às custas da discriminação racial”.

Em entrevista a CELINA, Clélia fala sobre os prejuízos psicossociais do racismo às pessoas negras e não-negras, como a psicologia e a psicanálise ajudam a compreender esse problema estrutural e propõe como desfazer o estigma sobre a população preta.

CELINA: O quão traumático é para as pessoas negras reverem exaustivamente atos de violência contra outras pessoas negras?
A repetição de cenas de violência contra a população negra pode ter um efeito traumático não só pelas cenas em si, mas pela frequência com que são apresentadas no cotidiano. Por exemplo, a cada vez que falamos o nome de George Floyd, lembramos imediatamente da cena do policial em cima dele. A repetição no noticiário das imagens de jovens, na maioria negros, sendo violentados gera, além da dor, uma certa naturalização da violência. E isso nada mais é do que o discurso ideológico do racismo.

Ao se identificarem na cena — pelas condições de vida, aparência e recorrência das imagens negativas na TV —, as pessoas negras vão perdendo as possibilidades de sonhar. A nossa saúde mental, inclusive para fazer as atividades do dia a dia, é afetada e os nossos projetos de vida são prejudicados. Nossa vida está o tempo todo ameaçada, e esses traumas afetam gerações.

Essas repetições ajudam a criar uma consciência social coletiva ou naturalizam a violência?
As duas coisas. Por um lado é super importante que essas cenas de denúncia circulem bastante, mas justamente com esse caráter de denúncia de algo que é inaceitável. Mas a mudança só acontece de fato quando as pessoas se mobilizam. Um ponto importante: a cena precisa ser mostrada de uma forma que as pessoas brancas se vejam e se impliquem. Quando aparece a cena do George Floyd, muitas pessoas pensam: “nossa, que absurdo o que esse policial está fazendo”. Mas elas não param para pensar quantas outras violências diariamente e muito mais perto de nós, ou seja, o quanto elas têm daquele em discriminação e racismo.

A gente teve aqui no Brasil outras cenas muito parecidas, que causaram menos comoção, que tiveram uma repercussão menor. Corpos negros são violentados e há impunidade, então, quem assiste a cena, arrisca naturalizar a violência e ver demarcada a impunidade de quem pratica a violência. É importante que os efeitos nocivos dessa veiculação excessiva da imagem não sirvam de justificativa para o nosso silêncio. É preciso que haja denúncia, que haja comoção e comprometimento da sociedade com a justiça igualitária para todas as pessoas.

Clélia Prestes, do Instituto AMMA Psique e Negritude Foto: Arquivo pessoal

Em casos de violência contra pessoas negras há uma dicotomia: a imagem do sofrimento é exibida exaustivamente, mas depois de alguns dias o debate cessa. O que explica essa espécie de “amnésia social”?
Tem uma certa apatia de boa parte da sociedade. E só há uma naturalização e esquecimento, sem luta efetiva por justiça, porque existem privilégios que se sustentam às custas dessa violência. O conforto dos privilégios vive às custas da humilhação de outros grupos, da exploração e da naturalização das desigualdades. Em relações hierarquizadas, em que o branco é tido como o topo, defender casos de violação de direitos não é apenas defender o outro, é abrir mão do que socialmente foi conquistado enquanto sujeito de poder.

Além disso, pensando na cena do George Floyd, questionamos por que algumas manifestações não se igualam àquelas que aconteceram nos Estados Unidos. Isso não tem a ver com o fato de que lá existe um movimento negro mais unido, mas sim com o fato de que no Brasil ainda se finge que o racismo não existe. Aqui esse tipo de manifestação é desqualificada. Além disso, a forma brutal com que os manifestantes são tratados, caso estejam contra os interesses do governo, diz muito sobre por que o racismo ainda é tão forte e ignorado no Brasil.

Quais são os efeitos psicossociais do racismo?
O racismo é uma ideologia de superioridade de um grupo sobre o outro. Nessa guerra, os dois grupos perdem a sua humanidade: um porque é alvo de humilhação social ao ser visto como inferior, e outro por se entender e ser visto como superior. A gente vive numa sociedade em que é muito frequente a violência contra pessoas negras; os dados de assassinato no Brasil são comparáveis aos dos países em guerra.

Esse extermínio, inclusive do conhecimento negro, não acontece apenas quando um corpo é assassinado, mas também por meio de todas as precariedades vividas por negros e negras. De forma natualizada, isso atinge psicologicamente todas as pessoas que se identificam com a raça, a cor e a etnia. Ao repetir exaustivamente o lado negativo, a sociedade diz que outras vidas parecidas com aquela não têm valor. A pessoa que está matando pode entender que tem privilégios por poder cometer o ato sem punição.

De uma maneira geral, como a psicanálise ajuda a entender o racismo?
A psicologia de modo geral, incluindo a psicanálise, tem uma enorme tarefa nesse cenário. Estou justamente falando de discursos ideológicos de racismo que se expressam por meio de estereótipos, preconceitos e discriminação que acontecem nas relações sociais. Isso chega à construção da autoestima, quando uma pessoa tem dificuldade ou privilégio para enxergar a sua beleza oua sua intelectualidade, por exemplo. A psicologia e a psicanálise podem oferecer espaços para elaboração dos efeitos do racismo qe para a produção de conhecimento sobre o seu funcionamento.

Eu não preciso de uma psicologia específica para cuidar de pessoas negras. O que eu preciso é que a dinâmica do racismo seja compreendida e incluída na reflexão sobre o caso. Por último, a psicologia e a psicanálise têm a tarefa de se posicionar e de reconfigurar as teorias e técnicas de atendimento que são majoritariamente pautadas em referenciais brancos, de classe média e heterossexuais, entre outros aspectos.

Como esse estigma sobre a população negra pode ser desfeito?
Para mudar é preciso entender que o corpo negro passa por uma dupla situação: a invisibilização, no sentido de que ele não aparece nos lugares da beleza, do poder e da intelectualidade; e a superexposição, quando enxergam antes que eu sou negra e só depois procuram saber quem eu sou, o que eu faço e o que falo. Os diversos setores da sociedade podem repensar onde estão as pessoas negras nas nossas comunicações.

As pessoas negras aparecem porque denunciam a violência, mas precisamos também poder falar sobre nossas potências e resistências. É preciso colocar os negros para falarem quando a temática não é o racismo. Repito: é preciso que se mostre as violações contra o corpo negro, mas que da mesma forma e na mesma intensidade, sejam exibidas imagens que ilustrem que somos muito mais do que pessoas assassinadas pela polícia.

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