Um dicionário de português brasileiro hoje certamente trará a definição de gibi como “nome dado às revistas em quadrinhos” — ou algo parecido com isso. Nos anos 1930, contudo, o verbete tinha cunho racista: era “menino negro”, “negrinho”, “tipo feio e grotesco”.
Em 12 de abril de 1939, há exatos 85 anos, a editora O Globo lançou uma revista em quadrinhos chamada Gibi. Na capa, como um símbolo, todos os números traziam uma representação estereotipada negativamente de um menino negro, o tal “gibi”, mascote que emprestava nome à publicação.
Os traços eram carregados de um viés pejorativo e discriminatório. Em conversa com a BBC News Brasil, a cartunista Laerte definiu essa ilustração como “um menino negro como se desenhava em tempos de racismo livre”.
Fato é que Gibi se tornou um sucesso nacional. Tão grande que, em pouco tempo, seu nome deixou de ser uma palavra ofensiva e preconceituosa. Tornou-se sinônimo de revista de histórias em quadrinhos.
O mais bem-sucedido quadrinista do Brasil, Mauricio de Sousa sempre conta que aprendeu a ler por causa de historinhas assim. “A primeira [revista] que vi achei caída na rua. Era um exemplar de O Guri [publicação semelhante lançada pelo Diários Associados em 1940]. Fiquei encantado”, conta ele à BBC News Brasil. “Tanto que minha mãe me alfabetizou em três meses, para que eu pudesse ler sozinho e não a amolasse mais. Eu tinha de 4 para 5 anos.”
“Depois de um tempo, conheci a concorrente de O Guri, que era a revista Gibi. Lembro que as duas brigavam para ter alguns dos heróis americanos da época. Mas a Gibi fez tanto sucesso que acabou virando o nome para designar todas as revistas em quadrinhos”, comenta.
“Ela fez parte da minha formação como escritor e desenhista”, completa o quadrinista. “O mundo deu voltas e, há muitas décadas, minhas revistas também são chamadas de gibis.”
O cartunista e jornalista José Alberto Lovetro, o JAL, presidente da Associação dos Cartunistas do Brasil, lembra que essa apropriação do nome foi tamanha a ponto de que gibi “se transformasse em uma generalização quando se fala em revista em quadrinhos”. “A importância dessa denominação fez com que, já nos anos 1980, uma biblioteca de quadrinhos tivesse a denominação de ‘gibiteca’”, ressalta ele, à BBC News Brasil.
“A diversidade de personagens e autores diferentes constantes naquele tipo de publicação atingia vários públicos. Foi a entrada dos personagens americanos em massa no Brasil com seus super-heróis misturados com infantis e histórias de humor. Isso estimulou muitos novos leitores por conta de que antes eram publicados no Brasil apenas revistas infantis, como a Tico-Tico”, enfatiza Lovetro.
Para ele, Gibi despertou a paixão por quadrinhos no Brasil, criando “mais leitores e adoradores” do gênero. “Hoje temos o Mauricio de Sousa, com sua Turma da Mônica, que vende mais de 12 milhões de revistas impressas ao ano, demonstrando que esses leitores infantis são a base do estímulo à leitura de quadrinhos e que ajuda a sustentar mais de 10 milhões de leitores ativos, que compram pelo menos uma revista de quadrinhos impressa ao ano”, analisa.
Pioneira na pesquisa de quadrinhos no Brasil, a jornalista Sonia M. Bibe Luyten, autora de, entre outros livros, Histórias em Quadrinhos: Leitura Crítica, ressalta que a trajetória de Gibi “é uma história longa que precisa ser contextualizada para se poder entender o que se passou na década de 1930 no mercado editorial e jornalístico”.
“Na minha opinião, o Brasil replicou 40 anos mais tarde o que aconteceu nos Estados Unidos”, diz ela, à BBC News Brasil.
A palavra ‘gibi’
O cartunista e biblioteconomista Richardson Santos de Freitas, o Ric, debruçou-se sobre a história da revista Gibi em trabalho acadêmico apresentado à Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em 2023.
Ele fez um apanhado histórico da evolução do termo gibi. “Surge como um apelido para meninos negros, giby, e meninas negras, gibi, baseado na palavra latina ‘gibbus’, que significa uma pessoa corcunda ou com corpo disforme”, esclarece ele, à reportagem, lembrando que encontrou registro desse uso em jornal de 1888.
“A partir de 1905, com o fim do regime de escravidão e a importação de teorias eugenistas para tentar implantar uma política de branqueamento da população do Brasil, gibi torna-se gíria para meninos negros, com significado racista”, acrescenta.
“Os dicionários captam e passam a adicionar a gíria como verbete de suas edições, atribuindo dois significados à palavra: de menino negro; e de um tipo feio, grotesco e hediondo. Atrelado a isso, os negros nos jornais e revistas da época eram retratados de foram estereotipadas, com desenhos […] que se tornam uma tendência de estilo.”
Sim, eram tempos de “racismo livre”, como pontuou Laerte.
Em meio a esse cenário, crianças e adolescentes negros, pela vulnerabilidade social, eram os que mais buscavam sub-empregos nas grandes cidades. “Entre esses trabalhos, estava a venda de jornais pelas ruas. Eram conhecidos como os pequenos vendedores de jornais, formados por crianças em situação de extrema pobreza. Alguns eram imigrantes italianos que traziam a experiência dos gazeteiros, outros eram os meninos negros, os ‘gibis’”, diz Freitas.
“Esses gibis saíam pelas ruas anunciando as manchetes da edição do dia. Logo, ganharam a simpatia de diversas pessoas. Os próprios jornais publicavam editoriais exaltando a figura trabalhadora do pequeno vendedor”, contextualiza o cartunista.
Considerado o pai dos quadrinhos do Brasil, o jornalista e editor russo naturalizado brasileiro Adolfo Aizen (1904-1991), colaborador dos jornais do Grupo Globo, viajou em 1931 para os Estados Unidos. Ali, encantou-se com uma novidade: suplementos de jornais, cadernos dedicados especificamente a temas policiais, esportivos, femininos e infantis.
“Entre eles, os suplementos infantis eram um dos mais promissores”, afirma Freitas. “Quando voltou, Aizen tentou convencer [o proprietário do grupo, o jornalista e empresário Roberto] Marinho [(1904-2003)] a implantar isso no jornal O Globo.”
Inicialmente, seu projeto foi recusado. O empresário avaliou que a ideia era de alto risco financeiro.
“Aizen então buscou outra parceria e, em 1934, lançou o Suplemento Infantil pela editora do jornal A Nação”, conta Freitas.
Ao que parece, o tino comercial de Marinho estava equivocado. As vendas do jornal triplicavam nos dias de veiculação do caderno especial de Aizen. Mesmo assim, o editor de A Nação não gostou: acreditava que esse tipo de material tirava a credibilidade de sua publicação.
O jornalista russo-brasileiro então criou sua própria editora, chamada de Grande Consórcio Suplementos Nacionais. “O sucesso de vendas de seu ex-funcionário fez Marinho reavaliar e se aventurar no segmento promissor”, detalha Freitas. “Chegou a convidar Aizen para uma conversa e lhe propor uma parceria, que foi recusada.”
“Os dois grandes magnatas do Brasil, Roberto Marinho e Adolfo Aizen, eram concorrentes ferrenhos e cada um lançava algo diferente em seus jornais para vender mais”, explica Luyten.
O Grupo Globo não descartou o plano de enveredar pela seara infanto-juvenil. Em 1937, a publicação criou O Globo Juvenil. “Para se consolidar no mercado, uma segunda revista em quadrinhos foi planejada”, diz Freitas. Assim, em 12 de abril de 1939, a revista Gibi foi lançada Até o final da década de 1940, como pontua o cartunista, “O Globo passou a ser a principal editora de quadrinhos do país.”
“A revista tinha como foco as histórias em quadrinhos. Mas a publicação dedicava algumas páginas para contos, curiosidades, fatos históricos e pequenas reportagens”, conta Freitas.
“Quando Roberto Marinho escolheu o nome Gibi para sua edição, o fez tendo em vista o sentido positivo da palavra, ligado ao pequeno vendedor de jornais. Ao lado do nome da revista, pode-se ver a imagem desse simpático menino, com um dos braços erguidos, anunciando a novidade para o público infanto-juvenil de que um a nova revista esta chegando”, comenta.
Eram outros tempos, não só de “racismo livre” como também de positividade acerca do precário trabalho infantil.
Conforme detalha a pesquisa de Freitas, a Gibi teve várias fases. “As principais foram a série original, que circulou entre 1939 e 1954, tendo 1842 edições; a Gibi Mensal, de 1941 a 1963, com 271 números; e a Gibi Semanal, de 1974 a 1975, com 40 edições”, relata.
“Porém, à medida que se consolidou o público, esses leitores passaram a ser fãs de personagens ou de gêneros específicos. Isso fez com que eles migrassem para revistas com uma linha editorial mais uniforme. O resultado foi que as revistas estilo mix perderam público, forçando o seu cancelamento. Mesmo a famosa revista Gibi não sobreviveu a essa mudança de preferência”, diz ele.
Lovetro concorda que “nos anos 1970 e 1980 foram as revistas de um só personagem que começaram a cair no gosto dos leitores, porque eram histórias completas”.
“Na Gibi, haviam muitas histórias de continuação a cada semana, e isso quebrava a voracidade de leitores em querer conhecer o fim da história”, avalia o cartunista.
Freitas conta que entre 1974 e 1985 houve algumas edições da Gibi, apelando para a nostalgia e com séries de curta duração. No início dos anos 1990, a editora Globo chegou a publicar 12 edições chamadas Gibi.
Praticamente só autores americanos
Se a Gibi foi importante para o mercado nacional por disseminar o gosto pelos quadrinhos, ela pouco trouxe de espaço para autores brasileiros — segundo Lovetro, houve um pequeno espaço apenas na segunda fase da publicação, com tiras que eram feitas por profissionais locais.
“Todo o conteúdo da revista era de personagens e autores norte-americanos, agenciados e distribuídos por sindicatos que detinham os direitos de licenciamento”, frisa Freitas. “Com isso, o custo da arte era mais baixo e os editores brasileiros teriam apenas o trabalho de fazer a tradução dos textos e a montagem das publicações.”
Diante disso, não havia espaço para a produção nacional. “O artista que, incentivado pela leitura, sentiu-se inspirado para criar suas próprias histórias, teve de buscar outras editoras para tentar viabilizar o seu trabalho”, acrescenta.
Quanto ao conteúdo, era uma mescla. “Gibi tinha como característica ser uma revista que combinava histórias de diferentes autores, dos mais variados estilos. Em uma mesma edição, o leitor poderia encontrar uma história de ficção científica de Flash Gordon de Alex Raymond, passando para uma investigação do detetive Charlie Chan desenhada por Alfred Andriola, viajar para aventuras do Fantasma de Lee Falk e rir com o temperamento explosivo do Pato Donald de Walt Disney.
Mandrake, Spirit, Capitão Marvel, Namor, Tocha Humana, Flecha Dourada, Ka-Zar, O Reizinho, Cavaleiro Negro, Agente X, Ferdinando, Brucutu e Popeye são apenas alguns, de uma infinidade de personagens, disponíveis nas páginas da revista ao longo do tempo”, detalha o cartunista.
“Como era o início de uma consolidação de um mercado de HQs, era também uma forma de testar e ver quais histórias atraíam mais o gosto de seu público”, salienta.
A popularização do gênero
Em seu trabalho de pesquisa, Freitas aponta que o sucesso editorial da Gibi se refletia nos números de venda.
“A linha editorial de formato mix conseguia atrair a atenção de diferentes gostos”, ressalta.
“As revista tinham um valor baixo porque eram produzidas em papel jornal e tinham altas tiragens. Para se ter uma ideia, em 1953, a tiragem quinzenal do Novo Gibi era de 60 mil revistas por edição, enquanto a Gibi Mensal chegava a 85 mil. Todos esses fatores ajudaram a formar leitores e despertar o interesse de artistas que cresceram lendo histórias dos mais diversos temas.”
Não à toa, virou sinônimo de HQ. “Uma revista de grande sucesso mexe com a imaginação dos leitores. Muitos passaram de fãs para profissionais da área”, pontua Freitas. “Normalmente temos a tendência de enxergar apenas os artistas, mas editores, tradutores, designers, coloristas, jornalistas, entre outros cargos, foram contratados para atuar na redação da editora na medida em que a tiragem e outras revistas eram criadas.”
Ele situa a Gibi dentro de “um processo de consolidação dos quadrinhos no Brasil”.
“Normalmente se diz que gibi se tornou sinônimo de histórias em quadrinhos devido ao sucesso da revista Gibi. As altas vendas são apenas um dos fatores, porque a revista se tornou muito popular em sua época e ajudou na formação de um mercado editorial no segmento das histórias em quadrinhos”, comenta.
Freitas acrescenta que a editora teve investimentos em publicidade e relações públicas, fazendo com que a revista se inserisse no imaginário dos leitores. Ele levantou ações do tipo, desde “o patrocínio de bailes de carnaval infantil, a parceria com a Força Aérea para despertar o interesse na aviação por meio de suas revistas, promoção de embaixadores da juventude, bancando viagens de alunos pela América do Sul, até o incentivo a um grupo de teatro de bonecos, chamado Teatro Gibi”.
“O sucesso de vendas da revista transformou a palavra gibi em sinônimo de revista de histórias em quadrinhos no Brasil, fazendo o sentido original cair em desuso”, resume Luyten. “A popularização do termo foi tão grande que inspirou as bibliotecas brasileiras a adotarem a denominação de gibiteca para seus acervos de HQ.”
A própria pesquisadora é protagonista desta história, no caso. Em 1972, quando ela lecionava editoração das histórias em quadrinhos na Universidade de São Paulo (USP), ela criou no campus universitário a primeira gibiteca do país.