IDADE PENAL: A sociedade e as lógicas da criminalidade – por Suzana Varjão*

“Criava-se uma geração de predadores que iria aterrorizar São Paulo. A maioria seria morta pela polícia, mas antes disso… Nossa preocupação não era só o dinheiro. Era vingança, explosão de uma revolta contida e cultivada em longos anos de cativeiro, nas mãos de sádicos carrascos torturadores” (Luiz Alberto Mendes).

O trecho acima foi extraído de Memórias de um sobrevivente, biografia de Luiz Alberto Mendes, o remanescente de uma geração de criminosos que, como registrado no citado livro- depoimento, aterrorizou a cidade de São Paulo durante décadas. E sinaliza para um contexto que a sociedade brasileira precisa conhecer, para julgar se a estratégia de redução da idade penal alcançaria o efeito desejado, de diminuir os índices de violências e criminalidades no País.

Luiz Alberto Mendes conta que fugiu de casa ainda menino, motivado pelos espancamentos diuturnos sofridos pelo pai. Em função de pequenos furtos, foi parar na Unidade de Recolhimento Provisório de Menores de São Paulo – ponto de partida de uma escalada sangrenta, pontilhada por torturas, aliciamentos e corrupção policial, de um lado; e de ataques cada vez mais brutais contra os cidadãos comuns, de outro.

FALÊNCIA

É importante frisar que a citada narrativa não estabelece conexões lineares entre causas e efeitos, o que tampouco se pretende aqui. O que jorra da recomposição da trajetória do homicida confesso é a falência de um modelo repressivo baseado em violações contra a pessoa. Um modelo (mais de vingança que de justiça) operado por agentes estatais em nome da sociedade – e que se tem virado contra ela. É este o aspecto que se quer, aqui, problematizar.

O fenômeno dos adolescentes em conflito com a lei é complexo e envolve questões técnicas e éticas; sistemas e sujeitos; fatos e contextos; coletividades e subjetividades. Tratar de um só tema, dentro de um debate já recortado, como o da idade penal, acarreta risco de simplificação – que corro, mas enfrento, por se tratar de perspectiva que perpassa o imaginário social, fortalecendo proposições não condizentes com o correto enfrentamento da problemática.

COOPTAÇÃO

Parto de um dos mais recorrentes argumentos utilizados pelos que acreditam que a redução da idade penal diminuiria os índices de violências praticadas por adolescentes – ou a eles associadas: a cooptação desse grupamento, pela criminalidade, em função de sua suposta impunidade. Há indícios e estudos, como Crianças no narcotráfico – um diagnóstico rápido (OIT, 2002), que apontam para esta direção.

“[…] Uma redução na idade de ingresso no narcotráfico também merece destaque – a média caiu de entre 15 e 16 anos no início dos anos 90 para entre 12 e 13 anos no ano 2000”.

A percepção sobre a tendência do mundo adulto, de corromper o universo infanto-juvenil, portanto, é correta. A interpretação do fenômeno e a solução de enfrentamento em debate, não. Primeiro, porque a propalada impunidade desse segmento, que seria assegurada pela lei federal conhecida como Estatuto da Criança e do Adolescente, é um mito. Como avaliado por diversos especialistas, o ECA é, em certos aspectos, mais rígido do que o Código Penal (veja quadro).

EXTERMÍNIO

E para além da severidade das sanções legais, há a implacável realidade das redes criminosas, que após cooptarem crianças e adolescentes para suas atividades ilícitas, os eliminam, como se exterminam ratos e baratas. Um extrato do livro Falcão – Meninos do tráfico, que registrou os bastidores da gravação de documentário homônimo, filmado pelo rapper MV Bill e o empresário Celso Athayde, dá uma ideia do modo de operação destas redes.

“Durante as gravações, 16 dos 17 falcões entrevistados morreram, sendo 14 em apenas três meses, vítimas da violência na qual estavam inseridos. Seus funerais também foram documentados”.

Impor sanções com base numa impunidade irreal é, portanto, eticamente injusto e tecnicamente ilógico. Pior: equivale a seguir uma das lógicas perversas da criminalidade organizada (e não apenas desta, como veremos), que aposta na deficiência de informação e na inconsequência próprias da faixa etária do grupamento em foco para usá-lo como escudo de proteção contra as consequências jurídico-legais de suas atividades.

UM CAMINHO

Um passo importante para enfrentar o fenômeno – real e construído – da criminalidade violenta no mundo infanto-juvenil cabe, pois, ao campo midiático, que precisa cumprir sua missão de bem informar e investir em seu potencial de construção de mentalidades na perspectiva de uma sociedade com baixos limiares de tolerância a violências – incluindo as praticadas pelos que violentam os que violentam, em nome da Justiça e da proteção social.

Pesquisa realizada pela ANDI – Comunicação e Direitos em 54 jornais impressos de todo o País demonstra como a cobertura noticiosa sobre os adolescentes em conflito com a lei negligencia sistematicamente aspectos importantes para a desconstrução da sensação de impunidade que a sociedade nutre em relação a esse grupamento – maior que a real e de consequências tão nefastas quanto esta.

CONSTRUINDO REALIDADES

E trata-se de apenas um aspecto da intrincada relação entre comunicação e violências. Há outros indícios e estudos apontando para a construção midiática não apenas do recrudescimento do fenômeno dos adolescentes em conflito com a lei como do apoio popular à redução da idade penal como solução para a problemática – assunto que merece reflexão específica, dada a complexidade desta perspectiva do debate.

Mas além do campo midiático e da esfera criminosa, há que se considerar a construção do fenômeno no âmbito da sociedade comum. Um “rastro”: as narrativas jornalísticas sobre a tragédia ocorrida recentemente em estádio de futebol boliviano. Entre elas, a intitulada Menor que assumiu morte de torcedor boliviano ganha bolsa de estudos da Gaviões. Verdadeira ou não, a notícia em foco chama a atenção sobre um aspecto que não se pode negligenciar.

Entre as interpretações sobre o estranho desdobramento da ocorrência, está a de que o adolescente responsabilizado teria sido premiado não pelo ato, mas pela admissão da culpa, para livrar os torcedores adultos (12) das penalidades previstas em lei. Assim, do mesmo modo que as redes criminosas, os envolvidos no acidente letal estariam fazendo uso da pretensa impunidade dos adolescentes brasileiros para garantir a própria incolumidade.

UMA PERSPECTIVA

A suspeita sobre a real autoria da ação que culminou na morte do garoto boliviano é corroborada, na citada narrativa, por uma foto de vários integrantes da torcida organizada Gaviões da Fiel soltando, simultaneamente, sinalizadores iguais ao que provocou a tragédia, gerando dúvida plausível sobre se teria sido exatamente o sinalizador empunhado pelo adolescente-réu o que atingiu o adolescente-vítima.

Mas, como dito, o que aqui importa não é o fato em si, que está sendo avaliado na esfera judicial, mas a perspectiva que ele suscita/fortalece: atos infracionais creditados a adolescentes e gravitando em torno de uma impunidade presumida e fictícia – o que aponta, mais uma vez, para a necessidade de se investir na desconstrução dessa mentalidade, para que se possa, efetivamente, discutir o fenômeno a partir de bases reais.

DESLOCAMENTO NECESSÁRIO

A cooptação de adolescentes por redes criminosas para a prática de delitos e o uso deste grupamento vulnerável como escudo para encobrir a autoria de violências (planejadas ou acidentais) exigem ao menos o deslocamento do debate sobre soluções para o problema do universo infanto-juvenil para o mundo que vem construindo (no mínimo, ampliando) o fenômeno: o dos adultos.

Se acreditasse em soluções meramente repressivas para a problemática das violências e criminalidades; se o sistema prisional não estivesse falhando em sua missão não de vingança, mas de proteção social; e se esta falha não resultasse em recrudescimento dos atentados praticados contra a sociedade, talvez concordasse com os que propõem penas dobradas para o adulto que coopta e envolve menores de idade na prática de crimes contra a vida.

A arena sangrenta chamada sistema carcerário brasileiro, porém, exige que se equacione esta questão, antes de se pensar em endurecimento de penas – mesmo que dirigidas a adultos. Há indicadores mundiais apontando para a eficiência de sistemas corretivos baseados na educação e no respeito aos direitos humanos, como o presídio de baixa segurança da ilha de Bastoy (Noruega), que tem a menor taxa de reincidência do mundo (16%, contra 70% no Brasil).

INSENSATEZ

Enfim, a criminalidade sempre encontrará brechas nas instituições e contratos sociais para desenvolver suas atividades com o menor risco possível. Fechá-las faz parte das estratégias de segurança pública. O que não faz sentido é nos rendermos à lógica perversa desta esfera de poder, inserindo indivíduos cada vez mais jovens em “escolas” de brutalidades e crimes, que transformam pequenos infratores em criminosos de grande potencial ofensivo.

Como demonstrado em publicação da Organização Internacional do Trabalho (OIT, 2002), o narcotráfico já coopta e usa meninos e meninas de até 12 anos como escudo em suas atividades ilícitas e violentas. Como interromper a tendência? Diminuindo a idade penal para 12 anos? E depois que crianças de 11 estiverem sendo corrompidas? Fixando a imputabilidade penal em 10, 9, 8, 7, 6 anos? Quantos? Qual seria o limite das redes criminosas – e de nossa insensatez?

DISPOSITIVO IDEOLÓGICO

É evidente o caráter ideológico da tendência de redução da idade penal, ora em risco de consolidação no parlamento brasileiro. Retrocede ao tempo da Doutrina da Situação Irregular, quando crianças ou adolescentes que estivessem nas ruas, desacompanhadas de pais ou responsáveis, podiam ser recolhidas, o que significa dizer encarceradas, sem que tivessem cometido qualquer delito, a mando do Juiz de Menores.

Na mesma linha do filme Minority Report, o Juizado de Menores funcionava como uma espécie de “unidade pré-crime”, em que “oráculos” (neste caso, olheiros) previam que crianças ou adolescentes, por seu aspecto físico (ou seja, suas condições socioeconômicas e étnico-raciais) e sua eventual situação de rua ou teriam cometido ou cometeriam delitos, e os tiravam de circulação. Em nome da proteção social, criminalizava-se a pobreza.

Há pesquisas evidenciando a natureza ideológica da política de encarceramento. Uma das mais recentes, The lives of juvenile lifers/A vida de jovens condenados à prisão perpétua (ASHLY, 2012), realizada com 1,6 mil condenados por crimes cometidos antes dos 18 anos, concluiu que 60% dos presos são negros, contra 25% brancos, e que quanto mais escura é a pele do réu, mais dura é a sentença. “Se o acusado é negro, é mais alta a probabilidade de ser condenado à morte, e se a vítima for branca, a chance aumenta mais quatro vezes”.

PERSISTÊNCIA

Por estes e outros motivos, sigo o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, quando este alerta que não se resolve problemas complexos como o dos adolescentes em conflito com a lei com o toque de uma “varinha mágica”. A prevenção, a (re)educação e o respeito incondicional a direitos são opções mais difíceis e demoradas, mas não se pode desistir delas, sob o risco de abrirmos mão de nossa condição humana para sucumbirmos à lógica da barbárie.

Também por tais razões, lamento as recentes declarações do criminalista Antônio Mariz, que, segundo uma narrativa midiática, teria sucumbido à ideia da redução da idade penal “porque a infância e a adolescência não são mais as mesmas de 30 anos atrás. Não há mais ingenuidade, aquele elevado grau de pureza […]”. Mais uma vez, a ponta de um fenômeno social é usada para alimentar um falso debate.

RELATIVIDADE

Para além da relatividade da argumentação sobre capacidade de informação e discernimento (de que adolescente se está falando? A que tipo de informação ele teria acesso?), esta perspectiva ignora estudos como o The lives […], que evidenciam, dentre outros aspectos, que o cérebro de um adolescente não é igual ao de um adulto, e que continua a se desenvolver até os 25 anos. Outro extrato, retirado da pesquisa The teen brain – still under construction/Cérebro de adolescentes – ainda em construção:

“O cérebro do adolescente não é um rascunho de um cérebro adulto. Ele foi primorosamente forjado por nossa história evolutiva para ter características diferenciadas do cérebro de crianças e de adultos” (NATIONAL INSTITUTE OF MENTAL HEALTH, 2011).

É importante frisar que as esferas biológica e sociocultural não são estanques ou absolutas, uma constituindo a outra ao longo do processo da evolução humana – o que posicionamentos extremos desconsideram. E a fala do jurista aproxima-se de um desses extremos, evidenciando a aderência a um dos grandes equívocos do debate público: limitar a problemática (e as soluções para a mesma) à ação do (ou sobre o) sujeito, ignorando-se a construção social do fenômeno.

Num esforço de síntese sobre a perspectiva aqui focada, reproduzo o pensamento do doutor em ciência política pela USP Tulio Kahn (veja artigos online), para quem “não se trata de sua [dos adolescentes] capacidade de entendimento e sim da inconveniência de submetê-los ao mesmo sistema reservado aos adultos, comprovadamente falido”. Este é o foco do debate sobre a melhor forma de proteger a sociedade contra violências, e que merece outras considerações.

INEFICIÊNCIA

O raciocínio predominante na esfera dos poderes que apostam na repressão pura e simples (e, infelizmente, da sociedade em geral) é de que penas e sistemas carcerários mais duros diminuem reincidências e ocorrências criminais, o que a falência da Lei de Crimes Hediondos nega: o número de delitos praticados por adultos e a superlotação das cadeias são indicadores da ineficiência da estratégia – ou de seu modo sangrento de operação.

Estender este sistema ao universo infanto-juvenil não é apenas apostar em um modelo de ação ineficiente. É alimentar o circuito da criminalidade, brutalizando, treinando e condicionando indivíduos cada vez mais novos a violentar a sociedade. Mais: fingir que o problema está sendo solucionando com a redução da idade penal provocará o efeito imobilizante da catarse, varrendo, mais uma vez, o debate sobre causas e soluções reais para debaixo do tapete.

ESCOLHAS

Como postulado por Murphy, “antes de propor a solução, é muito conveniente conhecer o problema”, para que não nos distanciemos de nosso objetivo. E se conhece muito pouco a problemática em foco. Investe-se muito pouco no desenvolvimento e difusão de pesquisas sobre os desdobramentos de uma ocorrência delituosa, por exemplo. Sequer os índices de reincidência neste universo são devidamente sistematizados e monitorados.

Finalmente, para que não nos desviemos do horizonte técnico e ético que desejamos, é necessário fazer escolhas. Neste sentido, que direito deve prevalecer? Do indivíduo ou da coletividade? O que é mais premente, neste momento? Punir a pessoa ou proteger a sociedade? Qual o caminho mais sensato? Seguir a lógica da criminalidade ou quebrá-la? Que investimento garante maior e mais duradoura segurança à sociedade? Em prevenção ou em punição?

Numa perspectiva mais ética que técnica, é preciso, também, optar pelo tipo de sociedade que queremos. A que se empenha em discutir modelos mais cruéis de fazer frente a atos cruéis ou a que prioriza o debate sobre formas mais humanas de preservar a vida? Se nossa opção for por esta última, devemos rejeitar proposições que só servirão para violentar os que violentam – e saciar a sede de vingança da porção bárbara que há em todos nós.

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QUADRO

A lei e o mito

Para responsabilizar os adolescentes em conflito com a lei respeitando a diversidade de histórias, perfis e tipos de delitos cometidos, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê seis medidas socioeducativas: advertência, obrigação de reparar o dano, prestação de serviço à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e internação (privação de liberdade). Em outros termos:

“[…] um adolescente com 12 anos de idade (que na verdade ainda é psicologicamente uma criança) que comete atos infracionais (crimes) pode ser internado (preso), processado, sancionado (condenado) e, se o caso, cumprir a medida socioeducativa (pena) em estabelecimentos educacionais, que são verdadeiros presídios” (José Heitor dos Santos, Promotor de Justiça em SP).

Como explica o jurista, ao criar as medidas socioeducativas, o legislador tentou dar um tratamento diferenciado aos menores de idade, reconhecendo neles a condição peculiar de pessoas em desenvolvimento – daí o uso de nomenclatura específica para denominar características e etapas que gravitam em torno de ocorrências delituosas.

CAMPO SIMBÓLICO

Em outras palavras, conscientes do potencial que o campo simbólico tem, de construir realidades, os legisladores recusaram os conceitos usados no contrato penal destinado a adultos, como forma de distanciar o sistema destinado à responsabilização dos adolescentes de um modelo repressivo comprovadamente falido.

Ao que parece, porém, a construção da sensação de impunidade foi mais veloz do que a construção de mentalidade e dispositivos (como o Sinase1) necessários ao estabelecimento de um sistema de responsabilização e reeducação eficiente, pautado pelo respeito incondicional aos direitos humanos – o que obscurece a realidade evidenciada pelo promotor.

Ignora-se até mesmo o fato de que, além de o sistema especial não diferir, na pratica, daquele destinado a adultos, em alguns pontos, o ECA chega a ser mais rigoroso que o Código Penal. Como lembra José Heitor dos Santos, no caso do adolescente, a privação provisória de liberdade, por exemplo, pode se estender por até 45 dias, contra no máximo 10 no caso do adulto (prisão temporária). E mais:

“O adolescente deve responder pelo delito desde seu primeiro ato de infração. Se o adulto for réu primário, recebe um habeas corpus e sai livre” (Jussara Goiás, Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua).

Há vários outros mitos e mentiras gravitando em torno dos adolescentes em conflito com a lei e do Estatuto da Criança e do Adolescente. Uma das mais avançadas legislações do mundo, elogiada por especialistas de diferentes nações, o ECA não é gerador de impunidades. Ao contrário – sua não aplicação é que favorece a ocorrência do problema.

* Suzana Varjão é jornalista, mestre em Cultura e Sociedade pela Ufba e gerente do Núcleo de Qualificação da ANDI – Comunicação e Direitos.

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