Identificação com a cultura negra através da literatura

A história dos negros no Brasil é marcada, desde sempre, por uma luta constante contra um processo sistemático que tenta a todo momento apagar partes da sua história. E a forma mais eficiente que acharam para desenvolver esse processo de “apagamento” foi através da base, mais especificamente na educação.

Por  João Guilherme de Lima Melo, enviado para o Portal Geledés

É nas escolas que as crianças têm o primeiro contato com o que a sociedade em geral caracteriza como normal, como certo. E é neste mesmo local, e neste mesmo momento que as crianças começam a ser afastadas de alguns pontos de suma importância para a sua formação pessoal.

Trazendo novamente a questão para a temática racial, os jovens negros desde cedo são levados a entender que a sua cultura tradicional, assim como os seus traços físicos característicos, não fazem parte do padrão de normalidade estabelecido na sociedade. Com isso, muitos “abandonam” a sua raiz para poder viver dentro dos padrões. E eles não estão errados, apenas estão dentro de uma questão muito abrangente.

Contudo, a população negra não ficou acomodada diante dessa situação, e usou do mesmo artifício que a sua “oposição” para combater a falta de identificação das crianças com a sua cultura de origem. A literatura, em todas as suas frentes, foi a arma escolhida.

Tratando da questão da aproximação dos negros com a sua cultura, Francisco Sandro Vieira, antropólogo e pesquisador do Centro dos Estudos das Culturas e Línguas Africanas e da Diáspora Negra (CLADIN-UNESP), destaca que “tem havido avanços significativos, especialmente na área de educação com a Lei 10.639/03, que institui a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-brasileira no currículo brasileiro”.  Francisco completa o seu raciocínio em relação à Lei 10.639/03. “Apesar dos persistentes obstáculos enfrentados para sua implementação, que decorrem do fato de vivermos em uma sociedade estruturalmente racista, tal instrumento estabelece o imperativo de visibilizar o protagonismo da população negra na construção daquilo que conhecemos como nação brasileira. Isso faz com que a população negra não só tenha mais contato com a sua ancestralidade, como permite que construa auto representações positivas”.

A ideia de tratar temas que vão desde a afirmação da beleza dos jovens negros, até as religiões de matriz africana já nas primeiras fases da construção educacional é de suma importância para a formação de adultos com uma consciência racial mais estruturada. E, pensando na construção de uma narrativa de identificação racial no início da aprendizagem, autores da literatura já entenderam que, de fato, esse é um bom caminho para levar as crianças, desde cedo, até as origens do seu povo. 

Temos um bom exemplo disso no livro “Conhecendo os Orixás: de Exu a Oxalá”, escrito por Waldete Tristão. O desenvolvimento da ideia de escrever este livro, por si só, já é interessante. Era 2006, e seu filho Róbson, na época com 14 anos, chegou da escola dizendo à mãe que interpretaria Zeus em uma peça sobre a mitologia grega. Segundo a professora mestre em educação pela PUC-SP, partiu do próprio filho a iniciativa de relacionar as características do deus grego com Xangô, Orixá das religiões de matriz africana. 

A partir daí ficou decidido que Waldete escreveria as histórias sobre os Orixás, e que seu filho as ilustraria. Mas, ao contrário de algumas produções que já estavam em circulação, ela pretendia escrever um livro que tratasse a religiosidade negra da maneira mais simples possível. “Quando pensamos no livro, queríamos escrever sobre o que nós gostaríamos de conhecer sobre os Orixás, como quem não sabe nada sobre. Partir do zero”.

Mas, além de ser uma fonte de formação para os jovens, a escritora destaca que o livro “foi escrito para as crianças, mas também para as crianças que estão nos adultos que não tiveram a oportunidade de conhecer esse conteúdo durante a vida”.

“Essa ideia de construir nas crianças uma identidade racial, ensinar a elas a gostar de si mesma, do seu cabelo, da sua cor, pra mim é fundamental”. Waldete Tristão.

 

No âmbito do processo de descoberta dos próprios negros, é importante destacar também características da cultura negra que, mesmo que não explícitas, estão intrínsecas na história de todos os pretos. “Nós, negros, mesmo que cristãos, não podemos negar que o axé está com a gente assim como nosso cabelo crespo, nossa pele, nossas características fenotípicas, uma vez que nossos ancestrais trouxeram o axé com eles”, afirma Waldete, que também é Coordenadora Pedagógica da rede municipal paulistana e Consultora em Educação do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT).

Contudo, mesmo com exemplos como o da escritora destacada anteriormente, ainda são poucos os autores negros que têm visibilidade dentro da cultura literária. Nas escolas, por exemplo, negro e literatura são duas palavras que não costumam estar juntas na mesma frase. Ao longo dos anos de formação acadêmica, nomes como Machado de Assis, Lima Barreto, Milton Santos e Maria Carolina de Jesus são um dos únicos que aparecem na matriz curricular dos estudantes. “Como estamos falando de uma nação projetada eurocentricamente e pautada no branqueamento, a produção sobre essa temática (a racial), em grande medida protagonizada por autoras e autores negros permanece invisível, ou seja, alijada do currículo oficial da rede de ensino”, destaca o antropólogo Francisco Sandro.

Logo, se nomes academicamente conhecidos, como os destacados acima, são tão pouco divulgados, autores que “correm por fora” têm ainda menos espaço dentro do cenário literário brasileiro. Entre eles podemos destacar o poeta Solano Trindade e seu filho Zinho trindade, o quadrinista Marcelo D’Salete, que em 2018 ganhou o Eisner Awards, mais importante prêmio internacional de HQs com o seu livro em quadrinhos Cumbe, que mostra a resistência dos negros durante nosso período colonial, e Roberta Estrela D’Alva, slammer e apresentadora do programa Manos e Minas, na TV Cultura.

 

“Esses autores desempenham um papel triplamente relevante; de construir narrativas positivas sobre sujeitos negros e sua própria história, de desconstruir papéis hegemônicos que exotizam, objetificam, estigmatizam, e inferiorizam a população negra, além do fato de produzirem, eles próprios, a ruptura com estruturas de poder que dificultam ou impedem o acesso de pessoas negras a este lugar de protagonismo criativo no universo da produção artística”. Francisco Sandro Vieira. 

 

Esses três escritores, inclusive, representam alas da literatura que são desvalorizadas pela sociedade no geral. Marcelo, Zinho, Solano e Roberta têm que lutar tanto contra a subvalorização do autor negro no Brasil, como também contra a desvalorização das literaturas em que são representantes. Entre elas vale muito à pena destacarmos o Slam, movimento que vem ganhando muito espaço nos últimos anos, principalmente entre os jovens negros que buscam de alguma maneira expressar a revolta frente às desigualdades que cercam sua vidas diariamente.

Os slams são campeonatos de poesia falada, onde, geralmente, os poetas têm cerca de 3 minutos para declamarem seus textos, sem adereços ou acompanhamento musical. O júri é escolhido na hora do evento, e dá notas de 0 a 10 para os competidores. 

Aqui, no Brasil, esses campeonatos foram introduzidos por Roberta Estrela D’Alva através do ZAP! (Zona Autônoma da Palavra) em 2008, depois de a poeta viajar para os Estados Unidos, onde nasceu o Slam (mais especificamente em Chicago) para estudar mais de perto esse movimento. “No começo o ZAP! era mais diverso no que diz respeito a profissões e idade, mas com menos mulheres e pouquíssimas pessoas negras”, afirma Roberta.

Com o tempo esses campeonatos de poesia foram ganhando maior diversidade de participantes e, ao mesmo tempo, ganhando maior importância dentro da sociedade devido ao seu poder de trazer para um mesmo espaço pessoas com relatos muito importantes, e que precisavam ser expostos para a sociedade de alguma maneira. “O Slam não dá voz, o Slam faz com que as vozes sejam ouvidas”, destaca Roberta. Em São Paulo, por exemplo, essa arte está se consolidando mais a cada ano, com importantes competições como o Slam da Guilhermina, o Slam das Minas, Slam Resistência, Slam Interescolar, e o próprio ZAP!.

 

“A gente tem vozes ali, em uma ágora na rua. Isso é político por si só”. Roberta Estrela D’Alva.

 

Tratando do desenvolvimento não só dos slams, mas das poesias orais em geral, Roberta destaca que “até os anos 50 nem se considerava a oralidade como poesia, ou o que não é escrito como algo literário”. “Tem um preconceito linguístico e literário em não considerar a poesia falada como literária”, completa a slammer.

A escritora traz à tona também um tema já tratado ao longo deste texto, o da importância de a população negra ter acesso a escritores que a representam. “Quando nós lemos livros do Martinica, do Achille Mbembe, e da Angela Davis, é muito chocante, é muito escurecedor, dá um alívio”.

Mas uma das últimas falas da poeta expressa muito bem o que significa os slams para quem decide expor, ali, passagens da sua vida que poderiam estar há muito tempo necessitando ser colocadas para fora. “Você já foi no Slam e viu a complexidade que é ter, ali, uma menina negra que foi estuprada conseguindo passar aquilo naquele ambiente?”.

Relatos como esse da Roberta, o livro escrito por Waldete, e todas as falas do Francisco são ótimos exemplos de que representatividade importa, identificação importa. Mas como uma menina negra vai se identificar com a sua cultura se, ao longo da sua formação, o número de escritoras negras com que ela teve contato foi tão pequeno? Como um menino negro vai ter orgulho de seus traços fenotípicos se, desde cedo, o seu ambiente social o forçou a entender que seu corpo é exótico, fora dos padrões de normalidade? Como um adulto vai ter uma consciência racial se durante a sua vida a sua identidade lhe foi negada diariamente?

São perguntas que, assim como os reparos à população negra, levarão mais algumas décadas para serem respondidas. Mas que têm na literatura uma importante opção para mudar o quadro de afastamento dos negros da sua cultura de origem. 

 

João Guilherme de Lima, estudante de jornalismo da PUC-SP

(Instagram:@ _jotagui)


** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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