Maternidade Preta X Paternidade Branca: breves observações sobre racismo nas disputas de guarda nas Varas de Famílias

Há muitos anos observo criticamente a dinâmica das disputas de guarda enquanto advogada, atuando não somente em cenários de litígio, mas também nas mediações.

É impossível, para mim, não perceber de que forma homens/pais brancos(ou não pretos) tratam mulheres pretas ou pobres. (Falar em vulnerabilidade financeira no Brasil é falar de negritude, naturalmente). 

A desqualificação da maternidade negra ocorre sempre de maneira mais grave. Quando a disputa pela guarda se dá no campo judicial, reforçam-se estereótipos discriminatórios que afetam a parcialidade de julgadores e prejudicam o acesso à Justiça por parte destas mães.

Incapaz de cuidar do filho, desequilibrada, sexualmente promíscua, são atributos comuns. Sua afetividade (ou vida sexual) será ainda mais posta em cheque e poderá ser utilizada como forma de desqualificar o exercício da maternidade. 

Por que estou falando sobre isso?  Mulheres brancas não experienciam estas violências, afinal?

Vejamos. Nas disputas de guarda, os tribunais levam em conta inúmeros critérios para aferir quem reúne mais atributos para cuidar de filhos(as). São eles: possibilidade de oferecer um lar seguro, harmônico, estável. Capacidade de educá-lo, transmitir valores superiores. Zelar por sua integridade, dentre outros. 

Pois bem.

Que cor da pele transmite segurança? Harmonia? Qual a cor da pele de quem tem estabilidade financeira, equilíbrio emocional? Quem inspira confiança? 

Fazendo uma análise bem superficial, é fácil perceber qual maternidade se encontra mais ameaçada quando em disputa judicial com homens brancos – que não raro se sentem donos dos filhos e filhas.

No ideário coletivo de uma sociedade marcada por valores da escravização, um pai branco (ou não negro) será quase sempre lido como mais capaz, mais qualificado para exercer a guarda de um filho do que uma mãe preta. (Branquitude, essa condição humana ideal.) Especialmente quando se constrói a narrativa de uma preta raivosa (=desequilibrada). Que aliena. De uma preta “que não sabe o seu lugar” – de sujeição e subserviência ao pai do seu filho. (E não raro às suas atuais companheiras brancas). 

A maternidade preta está intimamente ligada a uma história de violência e desumanização. Há muitas mães pretas falando sobre isso com legitimidade, não me apropriaria desta narrativa.

Parto daqui da perspectiva de uma advogada familiarista feminista, que entende que não pode me posicionar como espectadora silenciosa, naturalizando olhares/leituras “neutras” nesta dinâmica. Não há maternidade, há maternidadeS.

É preciso denunciar: o racismo está presente nas disputas de guarda nas varas das Famílias, sim.

Valores gerados pela escravização são marcantes em toda disputa de narrativa judicial que envolve filhos de mulheres pretas. 

Cada falha de uma mãe preta ganha um peso simbólico muito maior nos tribunais. É patente o seu lugar reservado à dor e subalternidade.

A maternidade preta em relações interraciais é ainda mais ameaçada. E me remete sempre à política de controle de reprodução colonial, que execrava a “mistura de raças”. Uma mãe preta que ousa se opor ao que determina e deseja um pai branco, responde, paga caro por esta “transgressão”. Entender o lugar que estas mulheres ocupam no sistema de Justiça é fundamental. Qual a credibilidade da narrativa de uma mãe preta em um processo?

Minha breve observação aqui é um apelo a  todas que atuam no campo das Famílias: estudem sobre raça, leiam sobre maternidade negra.

Ao representar uma mulher preta em disputa de guarda, necessitamos estar atentas/combativas às violências que irão se sobrepor.

Falar sobre este tema é falar de acesso à justiça também. Afinal, este é um espaço onde mães negras não costumam acessar.

Enquanto não é consolidada uma reconfiguração das estruturas de poder, temos o dever de promover o reconhecimento das que aí estão. (Como nos convoca Grada Kilomba).

** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE.

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