O que se ganha com o que se perde?

Nunca gostei da expressão “correr contra o tempo”. Tudo que é a priori contrário à alguma coisa soa para mim como fadado ao fracasso. Antirracismo, antimachismo, anticapitalismo… Mais do que simples termos, estas são palavras perigosas porque quando definimos a nós e a movimentos pela contrariedade, nossos olhos voltam-se mais para o combate e a destruição do que para criação de formas alternativas ao que nos oprime.

No pensamento feminista negro, esta mirada para o poder da criação foi nomeada por Patricia Hill Collins “epistemologia alternativa”: uma teoria crítica social focada nos interesses e referenciais de mulheres negras como grupo que posicionado à margem das estruturas de poder constrói alternativas radicais de afirmação e liberdade. (Pausa para conflitos e risos: a ideia não era teorizar… mas sou acadêmica. Acadêmicas teorizam, está tudo bem…)

Mas voltando ao Tempo, Ele agora apresenta-se na versão maiúscula, condizente com a soberania do orixá que assim se nomeia. A quarentena tem sido um Tempo de muitas emoções, suscitadas pela possibilidade de me relacionar com Ele de forma nova. Imposta pela pandemia, pela inabilidade e desinteresse do poder público em controlá-la, esta nova relação, a qual chamo Correr com o Tempo – tem uma coisa muito positiva. Foi criada por mim, exercendo o direito de ser uma mulher negra “autodefinida” (A autora passa a teorizar de forma prática, rs, para isso coloca sua analista na conversa).

“A pandemia nos coloca a questão do que fazemos com nosso Tempo”, diz a profissional que há quase uma década leva-me a mergulhos profundos. Submersa no fundo das minhas histórias, volto à superfície da vida com sua voz calma, por onde ecoa o mantra clássico: “vamos ficar por aqui” (“não vamos não”, rs).

Fico feliz pensando que escrever e refletir sobre tudo isso me faz rir, chorar, agradecer, temer. Tantos sentimentos que somos forçadas a abrir mão. Em momento no qual ultrapassamos 120.000 pessoas mortas por COVID-19 no Brasil, penso em uma das minhas estudantes, que na semana passada, no primeiro dia de aula do Período Letivo Emergencial (PLE/UFRJ), fitou-me esperançosa pela tela: “Giovana poderá nos dizer o que perdemos com a pandemia”. A sensibilidade da moça mexeu comigo, que como todo mundo já atravessei a curva do sensível.

Turma do curso Intelectuais Negras no primeiro dia de aula do Período
Letivo Emergencial (PLE/UFRJ 2020).

Enquanto convivemos diariamente com um discurso comum e superficial de que “a pandemia está nos tornando melhores”, a jovem cursista de Letras sintetiza em única sentença sua busca, alternativa e densa. Ela quer respostas para as perdas. O que podemos fazer delas?Sinceramente, não sei. Apenas insisto em tentar. Penso na admirável Érika Frazão, professora de Relações Étnico-Raciais na escola, na Universidade Federal Fluminense, Érika e sua família perderam Lidiane Vieira Frazão (1984-2020), “menina com sonhos e uma semente recém-trazida a este mundo, que só queria ser feliz e amar sua família”. Uma das histórias que mais me comoveram na quarentena, Lidiane fez sua passagem aos 35 anos, deixando – ops, o verbo deixar é inoportuno – sendo impedida de viver ao lado do marido, do pequeno Felipe Gabriel de 11 anos e de seu irmãozinho, Carlos Leonardo, de três semanas. Todas Nós temos uma história desta para contar, ao mesmo Tempo que cada uma delas é única. Reconhecer a singularidade dessas histórias. Conquista importante que vem da perda… Menos do que opostos, o ganho e a perda são complementares. Dependem um do outro para existir. Agora lembrei da minha avó, D. Leonor, que para amenizar as frustrações da neta favorita, a punha no colo mesmo depois de adulta e enquanto acarinhava seus cabelos, ensinava: “Não existem ganhos sem perdas, filhotinha”.

Voltando à sala de aula das Intelectuais Negras: “o que perdemos com a pandemia professora Giovana?” Enquanto ouço a pergunta penso na minha responsabilidade. Na confiança que quem pergunta deposita de quem espera-se respostas. Isso me deixa feliz. Afinal mulheres negras são tratadas como não confiáveis. “Seu trabalho não é acadêmico”, “Que horas sua patroa chega?”, “Onde está o pai deste menino?”…

A pergunta da universitária foi guardada em meu coração, em lugar especial onde habitam muitos ganhos que o trabalho acadêmico me traz. São ganhos repletos de perdas que me fazem questionar: existem ganhos sem perdas? Não. O que existem são perdas, evitáveis e inevitáveis. A morte de Lidiane é uma perda imensurável e irreparável, arrematada pela mal acabada costura do evitável. Pensar nela, em seus filhos e sonhos, acabou se tornando um impulso para refletir e criar alternativas às perdas.

Vem da sala de aula da UFRJ, a universidade pública mais antiga do Brasil que este ano completa 100 anos, a demanda por novos conhecimentos científicos. A situação das mulheres encarceradas na pandemia, o direito à educação, o trabalho de intelectuais negras na gestão das escolas de samba, o racismo ambiental. Ganhos para todo o Brasil trazidos por jovens negras do Complexo do Alemão, Engenheiro Pedreira, Santa Cruz, Raiz da Serra. Lugares negros em que as alternativas têm sobressaído ao combate. Fica para Ela que tem sido minha companheira de ideias e leituras na quarentena o fim do texto:

“A continuidade da vida, o ato de criar um momento feliz, mesmo quando o inimigo é poderoso e mesmo quando ele quer matar você. A resistência. Uma possibilidade nos dias de destruição” – Maria Beatriz Nascimento: Quilombola e Intelectual.

Amor.

Lidiane Frazão, nas amorosas palavras de sua irmã Érika Frazão: “mãe,
irmã, filha, esposa, trabalhadora”. (Arquivo Pessoal)

 

Giovana Xavier Professora UFRJ, ativista científica, mãe do Peri. Apoiada como líder pelo Programa de Aceleração e Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras Marielle Franco – Fundo Baobá Brasil para Equidade Racial. Autora do livro Você pode substituir Mulheres Negras como objeto de estudo por Mulheres Negras contando sua própria história.
** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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