Meu cabelo não é duro, meu cabelo não é crespo

Estou atrasada pelo menos 2-3 anos para escrever esta reflexão. Naquele momento, nas prateleiras das lojas de estética e farmácias ainda não encontrava produtos com o termo “cabelo crespo”. Havia alguns poucos indicados como “afro”. Lembro da minha sensação quando ouvi a primeira vez a frase: “o cabelo do negro não é duro, é crespo”. Pensei: “Hein ?! Como assim?”, mas deixei pra lá aquela que pra mim era só uma pontual má expressão. Um tempo depois, creio que em 2016, o termo me cruzou de novo, agora em uma embalagem de produto. A sensação foi a mesma, soou mal, passou arranhando, arranhou como a aspereza de uma superfície…crrrrrrrrespa.

Fui procurar nos dicionários, não achei referência da palavra relacionando-a a cabelos, busquei também online e nada. Compreensível, afinal quem ia perder tempo definindo o cabelo de negros em uma sociedade racista? As coisas mudaram, não sei quando aconteceu a inclusão, mas hoje você encontra definições e explicações online para o termo “cabelo crespo”. Sei que isto reflete a militância por valorização e representação do negro brasileiro e tem se popularizado cada vez mais nos últimos anos, especialmente com o movimento de transição capilar em que pessoas negras abandonam processos químicos para assumir seus fios in natura.

Agora a repetição da palavra está acostumando meus ouvidos, mas sinto a cada vez um nó na garganta e, por isto, mesmo sem a profunda pesquisa científica que sempre me comprometi a fazer resolvi escrever com urgência: Será mesmo que queremos deixar de ter cabelo duro para passar a ter cabelo crespo?

Talvez você responsa: “Deixe de drama Ana, assim como ondulado vem do latim unda significando onda, o termo crespo vem de crispus: ondulado, retorcido”. Em ambos casos referem-se à forma. Pois bem, tentei tomar isto como suficiente e ir curtir uma praia, mas não deu quando vi que paralelamente a crispus a tradução de liso do latim lisius não se refere à caraterística da forma “reto” ou “sem cachos”, mas sim a uma característica sensitiva tátil: “sem aspereza”.

Respirei fundo e pensei que não precisava me apegar apenas à distante etimologia de uma palavra. Tão importante quanto isto é considerar os significados do termo na nossa construção social. Qual mensagem subliminar os sinônimos e antônimos de uma palavra poderiam oferecer. Qual imaginário construímos ao observar outras coisas que intitulamos como crespas no nosso dia a dia?

Os crespos nosso de cada dia

Quanto aos antônimos de “crespo” o Dicionario.web resume como “macio, aveludado, suave”; “civilizado, educado, respeitador” e finalmente “desenrugado, desencrespado, esticado”. Quanto aos sinônimos a definição diz: que tem superfície áspera, rugosa, riçado, encapelado, ameaçador. Vale pontuar que áspero vem do latim asper -era –erum: duro, difícil, desagradável, rude, sem harmonia.

Neste momento comecei a perceber porque o termo arranha meus ouvidos, mas fui adiante e me perguntei: quais nossas referências de “crespo” no dia a dia? Bem, crespo é o velcro da mochila, crespa é a lixa para raspar parede, o cimento do asfalto, o bombril. Tente você também: pense em 3 outras coisas que você chamaria de crespo|a no seu entorno. Esta palavra está associada a coisas que arranham, machucam. Então, caros amigxs pretxs, por favor, passem a mão nos seus cabelos empoderados e me respondam: arranhou? Está áspero? É mesmo crrrrespo?!

Foco na forma
Entendo que estamos vivendo um processo de afirmação de identidade e que precisávamos urgentemente de algum termo que substituísse adjetivos como cabelo ruim, cabelo duro, mas este novo termo realmente nos representa? Queremos mesmo usar um termo que já é imbuído de significados negativos para nos descrever? Não podemos ignorar todo esse contexto de referências na pressa de atribuirmos um novo nome a nossas mechas.

Visualmente, é a forma que distingue um cabelo de outro, certo? Então não deveria ser ela o principal meio de classificá-los. Pois bem, isso não acontece com o cabelo do negro, mas vejo por aí argumentos distorcidos tentando justificar. O principal deles é dizer que o adjetivo “crespo” é atribuído a uma distribuição heterogênea da queratina nos fios. É dito que em um corte transversal, “o cabelo liso será visto com uma circunferência completa de queratina em volta dele. Já o crespo, terá mais queratina em alguns dos lados e menos em outros.” (www.allthingshair.com). Em resumo, o formato de microcachos, de circunferências apertadinhas, impediria uma distribuição homogênea da queratina tornando o cabelo naturalmente seco.

Hummm! Lamento, mas essa desculpa não convence. É possível uniformizar a queratina com hidratações profundas e nem por isso esses cabelos deixam de ser considerados “crespos”. Nesta mesma direção, um “crespo” quando passa por processos químico que compromete ainda mais sua queratina ganha status de alisado. Observe que nos dois casos, não é a queratina que importa.
A verdade é que quando se fala do cabelo do negro características com função politicamente bem marcada foram usadas para classificar. Primeiro falava-se de cabelo “duro” para um viés tátil, “ruim” como uma (des)qualidade. Uma amiga cabo-verdiana disse que o mesmo ocorre com as expressões em criollo: cabelo rijo (duro), cabelo bedejo (crespo), cabelo secu (seco).

Na sequência observo o grande avanço de atingirmos o status não depreciativo de “afro”, “black”, mas veja que ainda assim não há nenhuma neutralidade nas expressões. O cabelo passa a ser definido pela descendência, ou pela cor, sendo que o que importa não é a cor dos fios, e sim cor da pele (afinal há pessoas não-negras com cabelos pretos também). Por mais que tenhamos orgulho da nossa origem atente à mensagem subliminar das expressões. Elas nos dizem que existe cabelo (padrão) e cabelo de preto ou cabelo de descendência africana.
Saímos do cabelo duro e do cabelo ruim para o cabelo black e cabelo afro. Agora brindamos a expressão subliminarmente depreciativa de “crespo”. Veja que em nenhum destes casos o foco é na forma como acontece com a língua inglesa em que se tem:

 Straight: ereto, reto, direito
 Wavy: de onda, ondualado
 Curly: de cacho, caheado
 Coily: de bobina
 Kinky: torcido, curva acentuada

Foto: Imagem enviada pela autora do texto

Olho também com reticências para a direção de reduzir os cabelos a uma sigla, como “4C”. Primeiro, precisaria entender o porquê de eu ser posta como última na classificação sugerida segundo, não aceito uma redução da minha identidade a um mero código comercial. O mercado que se adapte a mim e não o oposto. Me recuso a ser cabelo duro, me recuso a ser cabelo crespo, me recuso a ser 4C. Palavras são expressões do que somos, são formas de comunicar o que se pensa. O termo, assim como o tom, tem uma vibração. Sei que é clichê, mas palavras têm poder sim.

O poder subindo à cabeça

Então, você me pergunta qual o melhor termo. Eu respondo que não sei, mas não é por isso que vou aceitar trocar seis por meia dúzia. Hoje, as expressões que uso para me referir à forma – e sempre reanalisando para não cair em uma nova armadilha – são: frisado, micro cacheado, micro encaracolado. E se a ideia é uma referência à poderosíssima “capacidade mousse” que meu cabelo tem de permanecer numa posição, sem se desmilinguir, sem desmanchar, chamo de “cabelo estável” ou “cabelo modelável”. Concordo inclusive com Carolina Maria de Jesus quando disse que achava “o cabelo do negro mais educado do que o cabelo do branco”. Olha como são características muito mais interessantes! Se estamos reconhecendo nosso valor e nosso poder, então que esse poder suba também à cabeça.

Friso ainda que agradeço, mas recuso termos como armado, seja de arma ou de armadura, tá? Infelizmente, também não me senti entusiasmada a usar a palavra “pixaim”, pois sinto que também ganhou uma construção negativa com o tempo a exemplo da música canta da banda Chiclete com Banana que diz que “Meu cabelo duro é assim, cabelo duro de pixaim”. Todavia é importante marcar que “a palavra tem registro escrito na língua portuguesa desde pelo menos 1887, e vem da língua tupi, dos índios brasileiros, com o significado original de ‘cabeça enrugada’” (dicionarioegramatica.com.br).

Se ainda nenhum destes termos nos representam, vamos escolher outros, inventar uma palavra que ainda não exista se preciso for. Não vamos aceitar qualquer coisa só porque a língua portuguesa não dá conta do nosso cabelo. Até porque amigxs, a língua que estamos usando para nos definir é a portuguesa e também não devemos ignorar esse aspecto colonizante da nossa trajetória.


** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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