Mídia e periferia: estereótipos, extermínio e o mito do “cidadão de bem”

Thiago Ansel, coordenador do projeto Direito à Comunicação e Justiça Racial do Observatório de Favelas, discorre sobre a estreita relação entre a estigmatização dos pobres e dos territórios populares pela mídia e o número absurdo de jovens negros mortos a cada ano no Brasil. Na imagem à esquerda, manifestação de 2007 organizada pelo Movimento Rio de Paz em Copacabana. Já na imagem à direita, ato do movimento Juventude Marcada Para Viver, formado por alunos da ESPOCC (Escola Popular de Comunicação Critica) em dezembro deste ano. Distância de cinco anos entre as manifestacões mostra que para o negro jovem das periferias pouca coisa mudou.

Por Thiago Ansel, do Observatório de Favelas

Talvez seja impossível para qualquer abordagem sobre o tema “mídia e periferia” não tocar nos processos de estigmatização tão característicos da história dessa relação. Questão seguramente menos explorada neste debate é a de que os estereótipos povoam ambos os lados – podendo em uma ponta assumir a forma do veículo de comunicação regido, da direção aos estagiários, única e exclusivamente pela ideia fixa de sucesso comercial à custa da desgraça e do pastiche popularesco; ou, no outro extremo, pela ideia de que todo pobre ou é “carente” ou “criminoso em potencial”.

A maior diferença neste jogo de simplificações é a gravidade das consequências sofridas por um lado e pelo outro. O que pode uma caricatura fascistóide da mídia? Seguramente quem lê a realidade conferindo demasiada importância a tal figura corre o risco de um escorregão interpretativo, uma vez que pensa a mídia a partir de uma perspectiva homogeneizante. Já os estereótipos sobre as periferias – com maior ou menor destaque no imaginário midiático nas últimas décadas – têm contribuído sobremaneira para a naturalização de um quadro de extermínio da população, predominantemente negra, dos espaços populares.

São em média 50 mil homicídios no Brasil todos os anos. Ao olhar para este cenário é preciso sublinhar o termo naturalização, evitando assim explicações midiacentradas ou preocupadas apenas com um suposto encobrimento pelos grandes veículos das informações sobre a grande quantidade de homicídios no país. A mídia, assim como a sociedade da qual é produto, naturaliza a questão, o que é totalmente diferente de escondê-la ou ignorá-la. Basta que se recorde, por exemplo, do alarde da imprensa acerca do lançamento do último “Mapa da Violência” ou do “Índice de Homicídios na Adolescência (IHA)”, publicações que dão conta não só do grande número de homicídios praticados no país, mas também trazem dados sobre a queda dos assassinatos entre os brancos e crescimento entre os negros, sobretudo, os jovens.

Uma das pesquisas citadas, o Mapa da Violência, mostra que no Brasil, em 2011, foram mais de 52 mil homicídios, 143 por dia, seis por hora, um a cada 10 minutos. O número de vítimas é 17 vezes superior aos mortos nos atentados de 11 de setembro nos Estados Unidos. Essa informação (provavelmente sem a comparação com os atentados, que é minha) pode ser encontrada em praticamente todos os sites de grandes veículos de comunicação. Quanto aos jovens entre 15 e 24 anos, as vítimas foram mais de 18 mil, 51 por dia, duas por hora. O número de mortos equivale a 72 vezes a quantidade de vítimas do incêndio na boate Kiss em um ano (comparação também minha). O dado também não é nem novo e nem segredo.

Se você é negro e tem entre 15 e 24 anos suas chances de ser assassinado se multiplicam mais de três vezes em relação às de um branco da mesma idade. No Rio de Janeiro, em 2012, enquanto na Zona Sul – região onde os brancos são 75% da população e a proporção de jovens brancos (15%) mais que dobra a de negros (6%) – a taxa de homicídios por 100 mil habitantes ficou em 5. Já na Zona Norte e na Baixada Fluminense – onde os negros são respectivamente 48% e 63% e os jovens negros são 12% (contra 11% brancos) e 17% (contra 9% brancos) – as taxas de homicídios por 100 mil habitantes foram de 22 e 37 nesta ordem.

Nenhuma destas informações foi omitida, encoberta ou deixou de receber destaque, pelo menos em determinado período. O que sugere que a sociedade lida com o extermínio sem se sensibilizar. A atenção e a perplexidade centram-se geralmente em casos isolados de homicídio e não nas condições que permitiram que as mortes acontecessem. Desta forma, concentrar a responsabilidade unicamente nos indivíduos faz com que a sociedade se exima e transfira a culpa para quem mata ou morre.

Nos relatos midiáticos o mais comum é que os assassinatos ganhem um caráter episódico e trágico. A vítima também passa a ter nome, idade, família, história, sonhos e projetos de vida. Essa humanização póstuma, embora positive a biografia da vítima, só vem reforçar, de outro lado, a lógica simplificadora incapaz de pôr em relevo a importância da corresponsabilização da sociedade e do Estado nessa morte. Este é mais um aspecto que tem recebido pouca atenção: não são somente as imagens negativas que alimentam o discurso do estereótipo. As imagens positivas também ocupam lugar de importância na construção dessas representações essenciais para a reprodução da violência.

Mesmo quando atribuem às vítimas características positivas, muitas dessas narrativas acabam por legitimar o extermínio. “Não era bandido, mas um trabalhador” – é de costume que destaquem as matérias. Mas o fato de ser criminoso justifica o assassinato? “Não bebia e nem usava drogas” – ressaltam outras tantas reportagens. Mas se bebesse ou fosse usuário de outras drogas, a morte se justificaria? “Era estudioso”. E se não fosse? “Não tinha passagem pela polícia”. Se tivesse? Ter eventualmente cometido algum tipo de crime ou simplesmente não ser exemplo de boa conduta são elementos que automaticamente tornam justo matar? As narrativas criminalizantes ao lado daquelas que parecem “santificar” as vítimas têm sido centrais na lógica de hierarquização do valor da vida a partir da qual a sociedade segue naturalizando o extermínio da juventude negra e periférica.

O estudo “Juventude, desigualdades e o futuro do Rio de Janeiro”, divulgado em 2012, mostra que são 5,3 milhões de brasileiros entre 18 e 25 anos fora da educação formal e do mercado de trabalho. Quantos destes terão suas mortes justificadas pelo discurso moralista e criminalizante? De outro lado, quantos serão os “cidadãos de bem” cujas mortes também servirão de matéria-prima para a naturalização e legitimação do extermínio? Somente terá respeitado seu direito à vida aquele que for “cidadão-modelo”? Mas a ideia de um “cidadão-modelo” não contraria o próprio princípio de igualdade?

Fonte: Brasil 247

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