A ideia de uma realidade diversa de futuro para o povo negro brasileiro, se constrói a partir da interpretação crítica do passado e das mudanças de fazemos coletivamente no presente, com criatividade, inovação e valorização da negritude.
É provável que você já tenha julgado alguém por não compreender ou adotar o mesmo estilo de vida que o seu, ou talvez já tenha ouvido a pergunta “por que você é tão diferente?”. No entanto, é fundamental reconhecer que nossa singularidade e individualidade são o que nos definem. Aceitar nossas variações revela nossa autenticidade e singularidade, demonstrando a riqueza da diversidade que existe.
De modo geral, costumamos legitimar comportamentos que são típicos de um grupo específico, e frequentemente nos surpreendemos quando pessoas que não pertencem à maioria não adotam esses comportamentos. É provável que você já tenha julgado alguém por não compreender ou adotar o mesmo estilo de vida que o seu, ou talvez já tenha ouvido a pergunta “por que você é tão diferente?”. No entanto, é fundamental reconhecer que nossa singularidade e individualidade são o que nos definem. Aceitar nossas variações revela nossa autenticidade e singularidade, demonstrando a riqueza da diversidade que existe.
Tecendo narrativas com Mira
Em um mundo em constante evolução, onde questões ambientais, identidade de gênero e expressão artística se entrelaçam, surge a figura singular de Mira Lima, 26. Artista visual e arte-educadora, Mira tece uma narrativa única por meio de suas criações, abordando temas urgentes e universais. Seu percurso artístico, marcado por reflexões profundas sobre a sociedade contemporânea, desafia convenções e convida a uma reavaliação das relações entre arte, sustentabilidade e identidade.
A preocupação com a emergência climática tem inspirado muitos artistas a repensarem sua prática criativa. Mira Visuais não é exceção. Através de suas obras, Mira aborda a crise ambiental, explorando a reutilização de materiais descartados pela indústria da moda. A técnica de transmutação têxtil, desenvolvida por Vicenta Perrota no Ateliê Transmoras, serve como alicerce para essa abordagem inovadora. Transformar resíduos têxteis em obras de arte é mais do que um ato criativo; é uma resposta à excessiva poluição da indústria da moda e um convite para repensar nossas relações com o consumo.
A identidade de gênero é uma jornada íntima e complexa para muitas pessoas. Mira mergulha nesse tema sensível, questionando a relação entre vestimenta e identidade. Através de suas peças de roupas criadas a partir de retalhos, ela oferece uma abordagem alternativa para pessoas trans que desejam expressar sua autenticidade. Ao rejeitar as normas binárias e massificadas da moda, Mira proporciona um espaço onde a vestimenta se torna uma manifestação genuína do eu, desafiando estereótipos e abraçando a individualidade.
O trabalho de Mira transcende a estética e toca em uma dimensão espiritual. Sua visão de transmutação energética é influenciada por sua criação na família das Testemunhas de Jeová. Ao reinterpretar arquétipos presentes em várias culturas, Mira constrói imagens que evocam paraísos perdidos e mundos ancestrais. “Particularmente, como pessoa criada por família de Testemunhas de Jeová, penso que esse trabalho também é de transmutação energética. Se lermos a Bíblia como poesia, existem alguns arquétipos gerais, noções presentes em várias culturas. Criar essas imagens de outros tempos, de paraísos cotidianos, de novos mundos ancestrais, são formas de retomadas desses arquétipos. O apocalipse, a queda do céu, o fim do mundo como conhecemos – profetizado na Bíblia – acompanha o fim das identidades, que hoje já cumprem seu papel no neoliberalismo.” relata.
Essa abordagem sugere uma busca por significados profundos além das superfícies materiais, convidando o público a uma reflexão sobre o papel transformador da arte em nossas vidas. Artistas como Mira já catalisam mudanças culturais e sociais, promovendo a conscientização sobre temas importantes e incentivando a ação para deixar um mundo mais sustentável e inclusivo.
Da Vila Operária para o mundo
“A gente vive numa sociedade meritocrática, que infelizmente não é todo mundo que tem acesso a tudo. Então, desde pequena eu também tinha um pouco dessa noção de que vou ter que me destacar, o que é muito ruim, né? Mas a gente acabou de certa forma dando certo.” Resume Thuane Nascimento, 26, contando um pouco sobre a sua jornada. Conhecida como Thux, criada na Vila Operária, comunidade do Rio de Janeiro, e estudante de direito, a ativista destaca-se na luta pelo meio ambiente e igualdade racial. Conversamos com ela sobre sua atuação como Diretora Executiva do PerifaConnection, movimento social que visa potencializar as narrativas de jovens periféricos de todo o Brasil, suas visões de mundo, ancestralidade, gostos e vivências enquanto mulher negra.
“Eu costumo pensar e falar que o território, as favelas, as periferias, são o melhor instrumento que as pessoas negras no Brasil conseguiram para poder se perpetuar no Brasil, nesse país. Porque o território foi o lugar onde a gente continuou a nossa cultura, as religiões e continuou a nossa fala, o nosso jeito, a nossa música, as nossas tradições”.
No Brasil, segundo o Instituto Locomotiva, cerca de 8% da população brasileira mora em favelas, número equivalente a 17,1 milhões de pessoas. O estudo de 2021 indica que as favelas no Brasil caracterizam-se como um fenômeno predominantemente urbano, com 89% desse grupo populacional localizado em Regiões Metropolitanas. Conforme os resultados da pesquisa, nessas áreas, a proporção de pessoas negras atinge 67%, ultrapassando consideravelmente a média nacional, que é de 55%.
Esses territórios, para ela, são sinônimos de cultura e reafirmação. Para entender a diversidade cultural dos povos negros não só brasileiros mas do mundo todo, é necessário reconhecer a vastidão da diàspora africana que durante séculos a migração forçada de africanos resultou em uma disseminação global de culturas e tradições, impondo o apagamento cultural de muitas delas. A estudante de direito, reflete: “Pensar sobre ancestralidade muitas vezes sim, é pensar com o território. Eu acho que a gente, todo mundo aqui, acaba se identificando muito com a sua história.” Thux acaba sendo uma das exceções, entre muitas, se o assunto é territórios a serem ocupados e reafirmados, sua presença na universidade é uma delas. Infelizmente, no Brasil, direitos básicos, como o acesso à educação, são vistos como privilégios. No ano de 2022, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) anunciou que a população negra e parda aumentou no Brasil, representando 56,1% do total. No entanto, apesar de constituir a maioria, essa parcela da população ocupa somente 48,3% das vagas nas instituições de ensino superior, incluindo tanto as públicas quanto as privadas. Números como estes podem e devem mudar, é por isso que, Thux destaca a importância da representatividade e do acesso à educação para jovens negros em seu trabalho no Perifaconnection. Inspirar mais iniciativas para que promovam a igualdade racial, a educação e o fortalecimento das comunidades periféricas em um futuro que se constrói no presente.
Confira o nosso bate-papo:
Quando falamos de cultura negra, é inegável que seus feitos estão enraizados em toda a sociedade: Nossas músicas, culinária, vestuário e espiritualidade. Mas não é de agora que todas as bagagens culturais que carregamos em uma sociedade acostumada com rótulos, caímos frequentemente nas armadilhas dos estereótipos, tentando homogeneizar essa comunidade tão diversa e multifacetada culturalmente. Desde a África subsaariana até o Caribe, as Américas, a Europa e outras partes do mundo, essa riqueza cultural se reflete em uma multiplicidade de línguas, religiões, tradições culinárias e práticas artísticas dos dias atuais.
O Punk é preto e ancestral
Por outro lado, em São Paulo, a vocalista da banda punk Punho de Mahin, Natália Matos, 37, também nos contou sobre as raízes da música punk, seu reconhecimento enquanto pessoa negra e a importância de bandas pretas nesse meio da música que sempre fugiu de estereótipos. A banda paulista é formada por 4 integrantes, Paulo Tertuliano (Bateria), Camila Araújo (Guitarra e vocal) e Du Costa (Contrabaixo e vocal), além de Natália nos vocais. Punho de Mahin é uma das representações da cena punk paulista, no mundo da música, os quatro decidiram se unir quando perceberam, que após passagens por outras bandas, gostariam de reverenciar nomes importantes da cultura negra através, no qual se identificavam através do seu som. Dali surgiu o nome “Punho de Mahin”, em homenagem a Luísa Mahin, ex-escrava africana, símbolo de resistência e mãe do poeta e abolicionista Luiz Gama. “É um nome muito forte e bem criativo pra gente. Tem um fundamento muito forte porque é pesado. Ela foi uma das líderes da Revolta dos Males da Sabinada. Estava envolvida em várias insurreições.” explica a Cantora.
A ressignificação do nome de Luíza Mahin, presente como nome de uma banda punk, destaca um paralelo interessante com o movimento punk em si. Assim como o movimento punk surgiu no final da década de 1970 como uma reação à cultura dominante e à sociedade da época, a escolha de incorporar o nome de Luíza à identidade de uma banda punk mostra como a revolta contra as normas estabelecidas pode ser rejeitada de acordo com diferentes contextos históricos.
De maneira semelhante, a ressignificação de Luíza Mahin na banda punk demonstra como a busca por desafiar o status quo e confrontar as expectativas pode ocorrer de maneira diversa em diferentes momentos históricos. Tanto os punks quanto Luíza Mahin representam a resistência contra o estabelecido, cada um à sua maneira, evidenciando como a revolta pode encontrar expressão tanto na música quanto nas ações, tornando-se um testemunha da capacidade humana de questionar e desafiar.
Em uma outra ponta desse contexto, vemos que a criação do Afropunk, um movimento cultural e um festival que celebra a interseção da cultura negra com a música, a moda, a arte e a expressão individual. Ele se originou como uma resposta à falta de representação de pessoas negras nas subculturas alternativas, como o punk e o rock, que historicamente foram dominadas por figuras brancas. O Afropunk busca redefinir essas subculturas e criar um espaço inclusivo e empoderador para pessoas negras se expressarem de maneira autêntica. Natália diz que o gênero foi crucial para a sua identidade “Pra mim foi, e é até hoje. Você não vai amadurecendo… o punk que me deu essa visão política. Hoje eu ajudei a construir, a desconstruir, a questionar o que me deu o pontapé politicamente e usar bastante o punk para falar sobre, denunciar racismo e as injustiças.” Diz ela. Seu trabalho ajuda a diversificar a narrativa no cenário musical e a promover a igualdade racial no mundo da música. Espera-se que mais bandas e artistas negras celebrem a diversidade e a resistência através da música.
Confira a entrevista na íntegra:
O cosplay é representativo
O mundo do cosplay, assim como a comunidade punk e outras e subculturas, não está isento de problemas de discriminação e racismo. Um dos problemas mais evidentes é a sub-representação de personagens negros nos filmes, séries, quadrinhos e jogos que inspiram o cosplay. Personagens populares são, muitas vezes, brancos, o que acaba dificultando para cosplayers negros encontrarem personagens com os quais possam se identificar plenamente.
Para Renato Lima, 30, Ativista Social e Cosplayer, mesmo depois de 14 anos interpretando personagens geeks, por ser negro ele ainda é visto como vergonha. A partir disso, Renato caracteriza seus personagens sem mudar suas características físicas que refletem a sua
negritude e afirmam a sua identidade. “Ah, vou falar uma coisa triste, mas é chacota até hoje mesmo depois de 14 anos. Então, por isso eu trago tão forte, essa representação do meu cabelo, da minha pele, eu não clareio, eu uso meu cabelo natural. Eu vim de um processo, né, claro. A primeira vez que eu fiz cosplay, foi de um personagem branco eu fui hateado muito, foi uma chuva de hate para mim e eu peguei isso e transformei em a minha arte.” disse ele.
Nas redes sociais, cosplayers negros são constantemente alvos de comentários racistas e ataques virtuais que buscam desvalorizar suas criações e habilidades artísticas. Isso muitas vezes leva à diminuição da autoestima e desestimula a participação de pessoas negras na comunidade do cosplay.
Felizmente, existem iniciativas, eventos e grupos de cosplayers negros que têm trabalhado para promover a representatividade e combater o racismo no mundo do cosplay. Eles organizam encontros, compartilham dicas e mostram o talento e a criatividade de cosplayers negros, contribuindo para uma maior visibilidade e valorização dentro da comunidade.
“Está mudando aos poucos, mas está mudando. Ter um evento como o PerifaCon que traz a representatividade, traz o empoderamento… É um evento voltado na periferia, com diversidade gigantesca aqui, entendeu? Não é um evento tão elitizado que as pessoas vêm e ficam felizes com a família. É muito maravilhoso! Então isso ajuda a gente a poder se soltar e ser quem a gente é. É um lugar seguro!” Explica.
Renato e outros cosplayers negros já impulsionam uma mudança na indústria de entretenimento, promovendo a representatividade e combatendo o racismo em filmes, séries e jogos.
Mas quando falamos de um presente e frutos, é essencial que todos os envolvidos nessa comunidade se conscientizem sobre as questões de representatividade e trabalhem juntos para construir um espaço mais justo e acolhedor para pessoas negras e outras minorias. Afinal, o cosplay deve ser uma forma de expressão artística e diversão para todos igualmente.
DJnastia: o legado do som negro
Na rica tapeçaria da história, existem inúmeras pessoas negras que desempenharam papéis pioneiros e revolucionários, mas que muitas vezes são negligenciadas pela sociedade. Essas figuras notáveis romperam barreiras, abriram portas e inspiraram mudanças significativas, apesar de suas contribuições frequentemente não serem devidamente reconhecidas. Um exemplo vívido desse fenômeno é o Sr. Osvaldo, conhecido como o primeiro DJ do Brasil, criador da Orquestra Invisível Let’s Dance e pioneiro da discotecagem nacional. Apesar de não ter sido uma ação planejada, Seu Osvaldo deu início a um movimento de afirmação da cultura negra. As vivências do seu Osvaldo abriu caminhos para a comunidade negra do bairro na época, é o que explica, Tadeu, seu filho mais velho “Na época o pessoal não tinha diversão assim, não tinha acesso de diversão para o povo negro, o que o povo tinha de diversão? Era campo de futebol, era um parquinho de vez em quando um cinema, clube de elite nem pensar para entrar. Às vezes vinha o circo no bairro e tinha um parquinho que não tinha nem luz. Então a diversão do pessoal era isso daí. Você ia dançar numa festinha na casa de família. Não tinha baile. Quando surgiu esse baile foi uma maravilha que foi quando o pessoal viu que dá para fazer e começou a juntar as pessoas. Foi a gente que fez parte dessa equipe, desse movimento todo, esse começo todo.”
Na década de 1950, Seu Osvaldo atuava como técnico de som em uma loja de discos, responsável por vender discos. Além disso, ele se dedicava a montar e consertar rádios nas residências das famílias do centro de São Paulo. “Eu tive a felicidade de trabalhar numa loja de montagem de rádio e também meu patrão recebia muito pessoal que ia pra Europa buscar equipamento eletrônico, ia para desmontar os aparelhos e depois ele começou a fabricar aparelhos. Pra vender pros cliente também. Nós estávamos montando, mostrando, tinha marceneiro na casa dos clientes e fazia a caixa de acordo com o que as madames queriam.” Comentou Osvaldo sobre seu começo.
Após tantas experiências na montagem desses aparelhos para essas famílias, ele se sentiu inspirado a criar algo especial para si mesmo: um toca-discos com potência sonora superior aos modelos convencionais. A partir dessa inspiração, deu início a um caminho que o levaria a se tornar um pioneiro na afirmação da cultura negra, contribuindo significativamente para a cena musical da época.
O DJ deixou de realizar festas nos anos 1960, porém, nessa época, já haviam surgido equipes de bailes inspiradas em sua criação. Essas festas, inicialmente realizadas nas garagens das casas de periferia, ganharam rápida popularidade e cresceram, naturalmente alcançando patamares maiores e chegando aos clubes tradicionais de São Paulo. Durante esses anos, o DJ influenciou seus filhos, Tadeu e Dinho Pereira, que vinham então, dar um novo caminho para a história do pai e passar o legado de geração em geração. “Os mais novos têm uma ótica totalmente diferente da dos mais velhos, e às vezes eles até nos reposiciona e realmente coloca a importância disso tudo num lugar correto, porque a gente por alguns motivos somos oprimidos por questões estruturais e não conseguimos ver um todo, por vários motivos, principalmente de identidade e resistência.
Eu procuro me manter o mais ancestral possível, essa é uma maneira muito pra alguns de maneira implícita, mas pra mim é a melhor maneira de mostrar minha ancestralidade, eu carrego eles comigo, e consigo tocar com meu filho, manter a ancestralidade e posicionamento.” Explica Dinho. As ações de Seu Osvaldo em seu passado, impulsionou a disseminação da cultura negra, deixando um impacto significativo na própria família, na cena cultural e musical da cidade, e até mesmo do país.
A diversidade da experiência negra é uma prova inegável da riqueza da humanidade. É essencial lembrar que as pessoas negras são indivíduos únicos com histórias distintas, interesses diversos e talentos excepcionais. A quebra de estereótipos é um imperativo para construir uma sociedade mais justa e inclusiva, onde todos possam ser reconhecidos por suas contribuições e não por generalizações injustas. Quando encaramos e pensamos em futuros diversos, todas as histórias se entrelaçam por um caminho só: o da igualdade e paixão de ser quem você é.
Ao celebrarmos e valorizarmos a diversidade das pessoas negras, enriquecemos nossa compreensão do mundo e promovemos um futuro onde todos possam prosperar em sua singularidade. É hora de abraçar a nossa riqueza, desconstruir preconceitos arraigados e construir uma sociedade mais igualitária, que reconheça a diversidade como uma força para o progresso.