O lançamento do Índice Folha de Equilíbrio Racial (Ifer) me motivou a retomar, mais uma vez, o tema das desigualdades sociais e raciais.
Desenvolvido por Sergio Firpo, Michael França e Alysson Portella, economistas do Insper, o Ifer descortina as enormes desigualdades raciais regionais, destacando, por exemplo, que o Sudeste é, ao mesmo tempo, a região mais rica do Brasil e a que mais impõe barreiras para que pretos e pardos tenham as mesmas oportunidades que brancos.
Nas palavras de França, “o índice busca sintetizar as barreiras que o negro enfrentou ao longo da vida”. A exposição Enciclopédia Negra, atualmente na Pinacoteca, revela parte desse cenário no campo das artes e apresenta ao público a obra de artistas escravizados e invisibilizados ao longo da história.
São retratos criados por artistas negros contemporâneos e estudos de pesquisadores, como Luiza Mahin, Luzia Pinta, Emiliano Mundrucu, Liberata, Preto Félix, além de inúmeros registros de quem liderou rebeliões, negociou compra de alforria, processos nos tribunais com acusações de assédio senhorial, abusos e perseguições sexuais, revelando e ressignificando a biografia de muitos personagens de tempos históricos diversos.
Como Sueli Carneiro sempre me ensinou, a história não começou hoje e, por isso, me surpreende muitíssimo como pudemos, enquanto sociedade nas suas diferentes instâncias, invisibilizar durante tantos anos nosso racismo sob o conceito dissimulador da democracia racial.
No atual contexto, não basta não ser racista, é preciso ser antirracista, com a coragem necessária para atuar na direção da desconstrução de conceitos, noções e comportamentos arraigados nos diferentes espaços e ambientes em que vivemos no nosso cotidiano.
A aceleração desse debate e a história de lutas dos movimentos e organizações negras no Brasil trouxeram à tona o conceito de racismo estrutural que tem mobilizado empresas, escolas, universidades, fundações e organizações da sociedade civil, muitas vezes pela primeira vez, na direção de tornar suas instituições mais inclusivas.
Nesse sentido, existem iniciativas diretamente relacionadas com o apoio às causas, organizações e lideranças negras, como, por exemplo, a Plataforma Alas, liderado pela Fundação Tide Setubal, em parceria com várias fundações e institutos, e o Fundo Baobá, que atua há uma década na promoção da equidade racial para a população negra.
A consciência do racismo e a busca por soluções envolvem leis e iniciativas que precisam ser debatidas em sua complexidade. Enquanto houver racismo, não haverá democracia, como enfatiza a Coalizão Negra por Direitos, e daí a necessidade de se repensar a cara do Brasil hoje e qual país queremos construir no presente e para as próximas gerações.
O samba-enredo da Mangueira, que cantou a possibilidade de outro país —“Deixa eu te contar a história que a história não conta. O avesso do mesmo lugar. Eu quero um país que não está no retrato”—, e o documentário “AmarElo – É Tudo pra Ontem”, produzido por Emicida, que coloca no debate e nas músicas conceitos como ancestralidade, espiritualidade e comunidade, com seu canto pelo “tudo o que nóis tem é nóis”, me emocionaram e reforçaram minha reflexão sobre esse Brasil que queremos.
Não podemos mais tolerar a violência policial que promove o genocídio da juventude negra. Não podemos apoiar a violência simbólica e excludente contra pessoas negras em diferentes espaços da sociedade. Estar atento a essa agenda, que encontra adversários movidos pelo ódio, envolve nos responsabilizarmos por iniciativas no nível de políticas, projetos e também no cotidiano de cada um.
Construir esse país que não está no retrato significa unirmos e reunirmos as lideranças sociais, acadêmicas, econômicas, políticas, periféricas, brancas, negras e indígenas. Somos um país com 51% de mulheres e 54% de negros, e é somente com essa cara que vamos construir uma nova sociedade, realmente brasileira e democrática.