Na política e na vida, imagens importam. Neste domingo (17), a cara do Brasil não é a do presidente da República espumando sandices pela boca ou a de seu ministro da Saúde, abestalhado, isolado no alto palco de sua irrelevância em uma entrevista coletiva que nada explica.
Ofuscados pela genialidade imagética do governador João Doria (PSDB), um ex-aliado feroz, Jair Bolsonaro e Eduardo Pazuello tornam-se hoje o que sempre foram: irrelevantes. Perigosos, mas irrelevantes.
Ao investir na semiótica da decência política calcada na vida, Doria sai desta gigante, como merece sair, apesar dos atropelos marqueteiros.
Na entrevista em São Paulo, tanto a linguagem empregada quanto a imagem veiculada por Doria contrastaram dramaticamente com um ministro da Saúde acanhado, apequenado e deveras irritado, como uma criança gigante cujo doce fora dela roubado.
Em democracias competitivas como é o Brasil, paixão e autointeresse se controlam e se anulam; em outras palavras: foi o marketing doriano que acabou controlando o genocídio bolsonarista.
Quem diria: poderiam ter sido as instituições, mas estas estão dormindo em berço esplêndido, exceto –em certa medida– o STF, a oposição e os governadores e prefeitos que não se calaram.
O procurador-geral da República sabe do genocídio em curso. O presidente da Câmara também. As páginas dos jornais estão encharcadas com o sangue das vítimas da pandemia que sujam as mãos de Augusto Aras e Rodrigo Maia.
Entrarão estes para a história como aqueles que deixaram que a nossa democracia sufocasse sem oxigênio. Manaus não é uma nota de rodapé da pandemia brasileira; é sua imagem de capa. É a verdade dura que deveria nos libertar.
A vacina, há de se frisar, não é produto do espetáculo político no qual Doria e Bolsonaro nos arremessaram; a vacina é produto do Brasil que deu certo e nos fez chorar hoje: é produto do maior sistema público universal de saúde do mundo.
É resultado do suor de muitas e muitos: de cientistas em institutos públicos, de servidores públicos, de diretores de agência de saúde com mandato fixo por lei, de profissionais do SUS que trabalham em condições desumanas, de jornalistas que deram nome e rosto para os 200 mil brasileiros que perdemos.
A foto de Monica Calazans, 54, enfermeira preta do hospital público Emílio Ribas, em São Paulo, encarna em seu punho em riste e choro emocionado a linha de frente da ciência e do serviço público a quem devemos o dia de hoje.
Monica é enfermeira, num país onde a cada minuto um profissional de saúde é infectado, em especial técnicos de enfermagem e enfermeiros, pouco valorizados.
Monica é preta, como a primeira vítima de Covid-19 no país, e mora numa cidade onde a mortalidade por Covid-19 é 60% maior entre negros.
Monica pertence a grupo de risco e cuida de sua mãe idosa, na periferia de São Paulo, num país onde mais velhos têm sido ignorados e a saúde na periferia, precarizada.
Monica, como a minha mãe, se formou na faculdade já com 47 anos, num país levado adiante por mulheres pretas como ela, todos os dias, nos ônibus e trens deste Brasil.
Imunização, ao contrário de marketing político, exige mais do que uma foto. Exige planejamento, priorização, coordenação; em suma: exige um governo, o que não temos.
Por hoje, no entanto, nos é permitido chorar de emoção. Monica Calazans é o rosto preto e periférico que os roteiristas desta tragédia chamada Brasil nos presentearam num ato derradeiro de felicidade e esperança, mesmo que equilibristas.
Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.