O erótico como poder

Nunca é fácil demandar o máximo de nós mesmas

Por Djamila Ribeiro, Da Folha

Foto com foco no rosto de Djamila Ribeiro, mulher negra de tranças, usando batom rosa claro
(Imagem: Lucas Lima/UOL Estilo)

“O erótico não é sobre o que fazemos; é sobre quão penetrante e inteiramente nós podemos sentir durante o fazer. E uma vez que saibamos o tamanho de nossa capacidade de sentir esse senso de satisfação e realização, podemos então observar qual de nossos afãs vitais nos coloca mais perto dessa plenitude.”

Esse é um trecho do artigo “Os Usos do Erótico: O Erótico como Poder”, da feminista e pensadora negra Audre Lorde, que nos traz reflexões muito profundas sobre transcender as normas impostas para poder sentir o erótico como força vital.

Em uma sociedade patriarcal e racista, Lorde argumenta que o erótico foi destituído do seu sentido real, tornando-se algo superficial, mecanizado, confinado somente “ao quarto” e utilizado para benefício dos homens, uma vez que foi esvaziado pelos modos masculinos de poder para negar às mulheres o conhecimento dessa força transgressora.

Para ela, erotismo tem a ver com plenitude, entrega, ter alegria em alcançar a excelência de algo para além da mediocridade incentivada na sociedade.

Porém, afirma a autora, negar o erótico como força vital cumpre um objetivo de impor às mulheres um lugar de submissão, de mantê-las presas em amarras ideológicas.

Ilustração de uma mulher negra, sem camisa,de costas, sentada em uma cama com uma taça na mão direita
Linoca Souza/Folhapress

Para Lorde, os homens difamaram o erótico e o usaram contra as mulheres para transformá-lo em algo plastificado, fazendo assim com que elas não o enxerguem como fonte de poder e informação. Reduzi-lo à pornografia cumpre esse papel. Porém, para a autora, “a pornografia é uma negação direta do poder do erótico, uma vez que representa a supressão do sentimento verdadeiro. A pornografia enfatiza a sensação sem sentimento”.

Suprimir o erótico em nome de algo sem sentimento seria uma das amarras que confinariam as mulheres ao lugar de objetos e não sujeitos de suas histórias, fazedoras de caminhos de libertação.

É algo que vai além de uma questão de moralismo —como acusam muitas mulheres que criticam a pornografia. Para Lorde, não se trata disso, mas de romper com uma existência mecanizada que incentiva a falta de sentimento e nega às mulheres poder para conhecerem a plenitude. Pois negar o erótico seria não ter consciência do próprio ser nos relegando à superficialidade.

Esse artigo é de uma beleza e de uma coragem sem tamanho. Pensar o erótico para além da questão sexual e botá-lo como força motriz de realização e consciência de si é poderoso, e Lorde enfatiza que a sociedade patriarcal tem medo de mulheres poderosas. “E essa é uma grande responsabilidade, surgida desde dentro de cada uma de nós, de não nos conformarmos com o que é conveniente, com o que é falseado, convenientemente suposto ou meramente seguro”, afirma.

O contato direto com o erótico seria uma forma de se rebelar contra uma estrutura que enfraquece, nega oportunidades, é lutar contra o autoaniquilamento e contra opressões que ligam trabalho ao lucro e não foram feitas para atender às necessidades humanas.

“O medo de que não vamos dar conta de crescer além de quaisquer distorções que possamos achar em nós mesmas é o que nos mantém dóceis, leais e obedientes, definidas pelo que vem de fora, e que nos leva a aceitar muitos aspectos da opressão que sofremos por sermos mulheres”, afirma em outro trecho.

Ou seja, a imposição do medo também seria uma forma de temer a transcendência ou a luta para superar as imposições de uma sociedade patriarcal e racista. Esse é um tipo de artigo que precisa ser lido, é quase impossível escrever a respeito do tema sem o citar o tempo todo.

Penso que Audre Lorde nos brindou com uma reflexão poderosa sobre as distorções que se impõem sobre conceitos que poderiam nos emancipar. Essa tem sido uma tática de quem está no poder: negar ou
confundir, esvaziar de sentido e potência instrumentos importantes de libertação para manter confinados e sujeitos a opressões determinados grupos. Porém, quando conhecemos o erótico, somos impelidas a lutar por transcendência e a perder o medo da plenitude.

“O erótico é um lugar entre a incipiente consciência de nosso próprio ser e o caos de nossos sentimentos mais fortes. É um senso íntimo de satisfação ao qual, uma vez que o tenhamos vivido, sabemos que podemos almejar. Porque uma vez tendo vivido a completude dessa profundidade de sentimento e reconhecido seu poder, não podemos, por nossa honra e respeito próprio, exigir menos que isso de nós mesmas.”

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