Teórico camaronês do pós-colonialismo Achille Mbembe é o homenageado deste ano com o Prêmio Irmãos Scholl, na Alemanha, por seu incômodo livro “Crítica da Razão Negra”
Do DW
“As lógicas de distribuição da violência em escala planetária não poupam nenhuma região do mundo, não mais que a vasta operação em curso de depreciação das forças produtivas”, constata o filósofo e historiador Achille Mbembe no epílogo de seu livro “Crítica da Razão Negra”. Trata-se de um pontapé inicial rumo a uma nova visão de mundo, o que comprova a atualidade da obra do teórico camaronês, sobretudo quando se pensa nas muitas guerras e conflitos ou nos incontáveis jovens desempregados, principalmente na África.
E foi por esse olhar afiado “sobre a sociedade mundial globalizada, que não remove apenas mercadorias e capital, mas também pessoas e força de trabalho”, que Achille Mbembe recebeu em Munique, na segunda-feira (30/11), o Prêmio Irmãos Scholl. A premiação acontece anualmente em homenagem a uma obra “que dê provas de independência intelectual, seja capaz de incentivar a liberdade civil, bem como a coragem moral, intelectual e estética”.
Justiça universal no mundo
A questão simples, porém tocante, abordada por este filósofo político, acaba sendo “a questão do mundo”: O que é o mundo? Como são “as relações entre suas diversas partes?”. Como viver neste mundo? A quem pertencem os recursos? O que move ou ameaça este mundo? Todas essas são questões mais atuais que nunca. A resposta de Mbembe é a visão de uma comunidade universal: “Só há um mundo e todos temos direito a ele”. No entanto, segundo a tese do teórico, antes que possamos criar um lar como seres humanos neste mundo comum, precisamos tratar da história dos traumas e das feridas. “Restituição e reparação estão, portanto, no centro da própria possibilidade de construção de uma consciência comum do mundo, ou seja, do cumprimento de uma justiça universal”, escreve o filósofo.
O devir-negro do mundo
É assim, portanto, que este pensador do pós-colonialismo imprime sua explicação de mundo. Mbembe estudou na Sorbonne, em Paris, depois de passar por Berkeley, Yale e outras instituições acadêmicas conceituadas dos EUA. Hoje, leciona na Universidade de Witwatersrand em Johanesburgo, África do Sul. Seu livro “Crítica da Razão Negra”, publicado em 2013 originalmente em francês (e traduzido para o português em 2014), embora seja considerado pelo próprio autor como “um ensaio”, é um tratado cheio de meandros sobre racismo e capitalismo, cujas teses são construídas acadêmica e também poeticamente.
“Razão negra” – quem por ventura pensar em qualquer tipo de conceito que possa remeter a “black is beautiful”, estará totalmente equivocado. O que Mbembe reconhece é um “enegrecimento do mundo” em uma época de “crespúsculo europeu”. E o substantivo “negro”, para ele, é compreendido como “toda a humanidade subalterna”, incluindo as hordas de operários mal remunerados da indústria chinesa, bem como os milhões de refugiados, que perderam tudo, ou os migrantes europeus em busca de emprego, submetidos a condições precárias de trabalho. Mbembe analisa o desenvolvimento desta “cisão” e “codificação da vida social em normas, categorias e números”. Para isso, ele volta mais de 500 anos na história. No centro de seu tratado recheado de teses, está o conceito do nègre – palavra usada em determinados idiomas hoje somente entre aspas, conotada negativamente e associada ao conceito de racismo.
Segundo Mbembe, o “Negro” é uma construção material e fantástica, que passou por três fases. A primeira delas, que foi do século 15 ao 19, se deu com a espoliação organizada através do tráfico transatlântico de escravos. Na segunda fase, os “seres cujos direitos foram usurpados” lutaram, a partir do fim do século 18 até o fim do apartheid há aproximadamente 20 anos, pela libertação e emancipação como “sujeitos completos do mundo vivo”. A terceira fase é esta na qual vivemos, a “da globalização dos mercados, da privatização do mundo sob a égide do neoliberalismo” – uma fase que começou no início do século 21 e que “é dominada pelas indústrias do silício e pelas tecnologias digitais”.
Em mais de 300 páginas, Mbembe comprova que, sem o “Negro”, o capitalismo não teria podido se desenvolver desta forma como se desenvolveu e ainda se desenvolve, transformando continuamente as pessoas em mercadorias. Para isso, o teórico faz uso de citações que vão do viajante Alexis de Toqueville a Frantz Fanon, o mentor francês do pensamento descolonizador. “Poder predador, poder autoritário e poder polarizador, o capitalismo precisou sempre de subsídios raciais para explorar os recursos do planeta. Assim o foi e assim o é, ontem e hoje, ainda que atualmente ele esteja colonizando o seu próprio centro e que as perspectivas de um devir-negro do mundo nunca tenham sido tão evidentes”.
Um livro para a sociedade mundial globalizada
Immanuel Kant estabeleceu em 1781, com sua obra principal de teoria do reconhecimento intitulada “Crítica da Razão Pura”, os conceitos decisivos para o Iluminismo. A partir desta herança, Achilles Mbembe criou, com seu trabalho sobre o afropolitanismo, nada menos que os princípios teóricos de um “projeto de um mundo por vir”, um mundo “liberto do peso da raça e dos ressentimentos”.
O Prêmio Irmãos Scholl é concedido pela Federação Estadual da Baviera da Associação do Comércio Livreiro Alemão, junto com a prefeitura de Munique, dentro do Festival de Literatura que acontece na cidade. A premiação, no valor de 10 mil euros, leva o nome de Hans e Sophie Scholl, dois combatentes da resistência, mortos pelos nazistas. Em 2014, o prêmio foi entregue a Glenn Greenwald, parceiro de Snowden, por seu livro No Place To Hide, lançado no Brasil sob o título Sem lugar para se esconder: Edward Snowden, a NSA e a espionagem do governo americano.