“O Retorno” | Atlânticos em transe sob a lua de Luanda, por Cidinha da Silva. Ep.6

Minha irmã, tu não conhecerias Luanda se não tivesses passado pela corrupção institucional, te faltaria um pedaço importante de percepção desta terra de mártires e de gente desterritorializada. Da mesma forma que ao chegar ao aeroporto reconheceste nas pessoas a casa de onde partiste, ao voltares para tua casa, tiveste contato com os ardis que nos tornaram o povo que somos hoje.

Sim, não te pediram comprovante de vacina da Covid para entrar no país, mas te pedirão para sair, depois de teres supostamente espalhado o vírus de que podias ser portadora. E se não tiveres, não te preocupes, já haverá um esquema montado e tudo dará certo. Por algum valor, não tão pequeno e em euros, tu conseguirás embarcar de volta. Para despachar a peça de madeira maciça que compraste a um artista, reserva de duas a três centenas de euros, dependerá de tua capacidade de negociação. Tuas ancestres foram negociantes, por que ainda não aprendeste a negociar?

Tu, com tua cara de parva, serás abordada por alguma funcionária da segurança que terá a cara de tuas tias bonachonas e te perguntará ao pé do ouvido se tens algum dinheiro a declarar. Tua face surpreendida diante da tentativa explícita de extorsão levará a mulher a ser específica contigo: dólar? Euro? Kwanzas? Só tenho reais, tu pensarás em responder, mas não o farás com medo de sofrer qualquer tipo de retaliação que te obrigue a pagar propina sob pena de perderes o voo.

A corrupção que teus olhos alcançam é pequena, é singela; temos a grande, a mastodôntica. Temos a filha do ex-presidente do país, por exemplo, que se tornou a mulher mais rica de todo o continente, que recorria aos bancos para empréstimos exorbitantes sob a justificativa de que para construir a Angola do futuro era preciso investir e, como ela era quem era, davam-lhe o que pedia, por mais estratosférico que fosse o montante.

A moça no aeroporto não tinha um fuzil como o guarda que elogiou teus óculos escuros, lembras? Mas tivestes o medo correto e a presença de espírito para evitar que ela lançasse outras armas de coerção sobre ti.

E trate de desmanchar essa cara de choro, desfaça suas ilusões. Não se trata de a mulher em questão ser boa ou má pessoa, ela é apenas uma sobrevivente que quer levar comida aos filhos, ou quer comprar uma televisão maior para assistir às novelas brasileiras, ou ainda, quer conseguir dinheiro para cobrir o preço extorsivo dos táxis que a conduzirão ao trabalho nos dias de chuva, porque, se faltar, perde o emprego, estás a ver? São muitas questões para as mulheres solucionarem, tem ainda os sobrinhos mais velhos que ela ama como filhos, são filhos, e não têm trabalho e sonham se mudar para o Brasil e fazer a vida por lá e consertar a vida dos de cá.

Mal sabem que podem morrer embaixo de porradas como Moïse, o jovem congolês. Esse tem sido nosso destino de alvos da recolonização. Não pense que só a China tem um comportamento extrativista conosco, porque te assusta saber que eles tenham dois trabalhadores para cada cama, dormindo um no turno em que o outro trabalha. O Brasil de Lula abriu as portas dos países africanos para as igrejas que querem nos roubar tudo, nosso espírito e nosso dinheiro, e nos mandou as empresas brasileiras que vendem a ideia de progresso e pleno emprego, mas o que fazem é se aproveitar da mão de obra local. Sobre o Brasil de Bolsonaro e sua relação conosco, nem faço comentários.

Os chineses agora têm arrancado nossos baobás inteiros. Não sei se a tecnologia deles os fará sobreviver transplantados, mas, se sobreviverem, serão para sempre tristes, porque nós, a seiva que nutre os imbondeiros, continuaremos aqui ou espalhados pela diáspora, protegidos pela beleza inacreditável dessa lua, no movimento espiralar de contar a história pelo começo, meio e começo de novo.


Cidinha da Silva/Foto: Daisy Serena

Cidinha da Silva (MG) publicou entre outros livros, os premiados: “Um Exu em Nova York” (Biblioteca Nacional, 2019) e “O mar de Manu” (APCA 2021, melhor livro infantil). Tem dois livros no acervo do PNLD Literário (FNDE), “Os nove pentes d’África” (2020) e “Oh, margem! Reinventa os rios!” (2021). Suas obras integram ainda outras políticas públicas de formação de acervo nas escolas do Brasil. É curadora de Almanaque Exuzilhar (Youtube), conselheira da Casa Sueli Carneiro e doutora em Difusão do Conhecimento.


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