Externato Perseverança
Fundado em 5 de março de 1860
É o estabelecimento de ensino mais antigo desta cidade. Até 1878 estava organizado com as proporções de um bom colégio onde foram educadas muitas meninas das principais famílias desta terra, e até esse tempo denominara-se Colégio Perseverança.
Neste estabelecimento educaram-se e criaram-se meninas pobres e só dali saíram casadas a expensas do mesmo colégio.
Presentemente é o externato Perseverança regido pela sra. Bernardina Cesarino Gomes.
São professoras d. Maria Joaquina Cesarino, d. Felicidade Augusta Pereira Soares, d. Bernardina Cesarino Gomes e d. Balbina Cesarino e Silva.
Ensina-se as seguinte matérias:
Gramática portuguesa, francês, geograpfia, história pátria e elementos de história geral, caligrafia, aritmética, piano e canto, doutrina cristã e prendas domésticas.
É frequentado por 20 alunas.
O externato está situado em frente ao passeio público, um dos lugares mais higiênicos e aprazíveis desta cidade. – Rua General Osório n. 56.
À primeira vista, o texto do Almanach Campinense para o ano de 1881 reproduzido acima, parece se referir a uma instituição de ensino com educação aperfeiçoada, mas comum para meninas e moças da segunda metade do século XIX. No entanto, o Colégio Perseverança, que também funcionou como externato, foi uma renomada instituição de ensino que existiu na segunda metade do século XIX fundada, dirigida por mulheres ao longo de toda a sua existência. O reconhecimento do externato foi tão grande na época que, ao visitar a cidade de Campinas, D. Pedro II – o imperador do Brasil, fez anotações sobre o colégio em seu diário destacando a reputação do externato e a cor da pele dos fundadores: os “pardos” Balbina Cesarino e Antonio Cesarino.
Como conta Daniela Kabengele, em 10 de Março de 1860, o casal abriu o colégio para moças em Campinas na Rua Alecrim, número 1. Anos depois, a instituição foi reaberta na Rua do Comércio, atual Rua General Osório. A primeira gestão do externato foi feita por Balbina Gomes da Graça Cesarino, uma mulher negra sobre a qual as pesquisas acerca da família Cesarino não conseguiram levantar muitas informações biográficas. Além de diretora, ela era professora e lecionou no colégio. Ela casou com o mineiro Antônio Ferreira Cesarino por volta de 1820 e, anos depois, fundou a escola junto com ele. O casal teve dez filhos: Amancia, Zeferina, João Clímaco, Antonia, Maria Joaquina, Bartholomeu, Antonio, Aprígio, Bernadina e Balbina.
Além da atuação profissional na área da educação, a instrução foi uma ferramenta importante mobilizada pelas mulheres da família Cesarino para a melhora das condições de vida de seus descendentes. O próprio Antonio Cesarino foi alfabetizado por sua tia Marianna na infância, quando morava na fazenda Gaio, localizada na cidade de Paracatu. Quando ele se mudou para Campinas com o pai e foi trabalhar como feitor numa fazenda, rapidamente foi estudar. Ele aprendeu música com Maneco, o pai do estimado músico Carlos Gomes. e obteve licença para lecionar. Antonio colaborou com diversas atividades do colégio, mas trabalhou a maior parte do tempo de sua vida na área do vestuário, como carpinteiro, músico e mascate. De modo que, as mulheres dessa família ficaram responsáveis por ministrar aulas e dirigir o Colégio Perseverança.
Assim como a matriarca da família, as filhas do casal também sabiam ler e escrever e alcançaram uma formação elevada para a população feminina da época. Tanto na trajetória de Antonio e Balbina, como na dos filhos e filhas do casal, é evidente a preocupação com a educação, uma questão cara para população negra no Brasil ao longo da escravidão e do pós-abolição. Além de Maria, Bernardina, Amância e Balbina-filha terem sido letradas, formadas como professoras e trabalhado no colégio, sabe-se que o João, Aprígio e Bartholomeu também tiveram a educação garantida pela família e, por isso, ocuparam boas posições no mercado de trabalho.
João foi advogado provisionado, ofício também conhecido como rábula, o que lhe permitiu advogar sem título acadêmico, mas com autorização do poder judiciário. Aprígio foi jornalista e músico, trabalhou no Diário de Campinas e na Gazeta de Campinas, dois importantes jornais da cidade. Bartholomeu atuou como marceneiro e carteiro, profissão conceituada na época para a qual eram exigidas habilidades de leitura, escrita, aritmética elementar e atestado de bons antecedentes.
Essas experiências e trânsitos no mercado de trabalho livre mostram que as práticas de letramento protagonizadas pelas mulheres negras dessa família foram estratégias importantes para que esses trabalhadores e, sobretudo, as trabalhadoras ocupassem lugares considerados respeitáveis, de prestígio. Ao longo da segunda metade do século XIX em Campinas, o número de mulheres exercendo o ofício de professora era escasso. De acordo com o censo de 1872, apenas 5% das mulheres dessa região atuavam como docentes. Em um período no qual a instrução passou a ser compreendida pela sociedade como um mecanismo de civilização, progresso e um elemento fundamental para que as libertas e os libertos vivessem em liberdade, o investimento no letramento feito pelas Cesarinas foi uma maneira de tentar validar a cidadania, em um contexto no qual cada vez mais surgiam barreiras para a mobilidade social das pessoas de cor.
Ao longo da segunda metade do século XIX, as hierarquias sociais foram gradativamente sendo justificadas pelo acesso à formação e aos títulos acadêmicos que se tornaram menos acessíveis. De modo que educação foi propagada pelos governos como o meio pelo qual a população acompanharia o desenvolvimento social e econômico. Nesse contexto, a escola passou a ter grande importância para a sociedade, sendo compreendida como uma ferramenta para equalizar as desigualdades, mesmo que esse discurso não se confirmasse na prática devido a existência de dois tipos diferenciados de educação: uma voltada para os pobres e negros e outra voltada para as elites.
Em 1872, apenas 5% das crianças entre 6 e 15 anos frequentavam a escola. O censo de 1886 não possui informações sobre instrução, porém os dados demográficos de 1890, apontam que, em Campinas, apenas 14% da população sabia ler e escrever. O letramento era algo distintivo e valioso. Marianna e Balbina-mãe sabiam disso.
Ainda que a família Cesarino fosse de origem pobre, o público do Colégio Perseverança era composto por moças e meninas de famílias abastadas da cidade, além das meninas negras, das órfãs e pobres que estudavam com o apoio de bolsas financiadas financiadas pela subvenção da Intendência Municipal. A instituição foi um espaço importante para a educação de crianças e adolescentes e lugar que colaborou para formação de pessoas que se tornaram professores reconhecidos em Campinas, como Leopoldo Amaral, que se estabeleceu como jornalista depois de ter lecionado no externato e Amador Florence que tornou-se professor de latim, francês e desenho no Colégio Culto à Ciência.
Além de oferecer educação de ótima qualidade, o externato era referência na formação das moças para os serviços do lar. Em uma sociedade na qual se pregava o ideal de que mulher respeitável era aquela que cuidava dos filhos, da família e do ambiente doméstico, promover uma educação voltada para os trabalhos de casa e do cuidado era algo importante para as Cesarino, ainda que elas estivessem todas empregadas no externato e, por isso, tendo que dividir as funções externas com as tarefas de casa. Amância e Bernardina permaneceram solteiras a vida toda e dedicaram boa parte do seu tempo à docência e à manutenção do colégio. O empenho era necessário, pois ele gerava a principal fonte de renda da família.
Em 1869, durante a gestão de Amância e Bernardina, o Colégio Perseverança já passava por algumas dificuldades financeiras. Nesse ano, as diretoras enviaram para Câmara Municipal um pedido de isenção de impostos alegando que o externato estava passando por problemas orçamentários que dificultavam a manutenção do espaço e do quadro de funcionários. Elas destacaram no documento que os pais estavam velhos e sendo sustentados pelos rendimentos do colégio, o que também pesava nas finanças da família. Três anos depois, em 1873, as irmãs requeriam novamente à Câmara a dispensa dos tributos, alegando que a redução dos custos possibilitaria a continuidade do atendimento gratuito às meninas pobres.
Em certa medida, as dificuldades financeiras pelas quais passou o externato, que fechou em 1885, decorreram das instabilidades econômicas que se sucederam no Brasil a partir da década de 1870, e resultaram na crise do encilhamento que abateu a economia nacional entre 1890 e 1891. Após um período marcado pela instabilidade monetária e oscilações econômicas causadas por crises internacionais, a Guerra do Paraguai e o desmantelamento do sistema escravista, a política de encilhamento que aumentou a emissão do papel moeda em quantidade acima do necessário causou o desequilíbrio da bolsa de valores. Esse processo levou a inflação às alturas, gerou altos índices de desemprego, recessão e crise cambial.
Somados a esses eventos, os sucessivos falecimentos na família também colaboraram para o abalo das condições financeiras dos Cesarino. Em 1882, João Clímaco morreu. Maria Joaquina faleceu em 1889, na primeira epidemia de febre amarela. Amancia e Bernardina vieram a óbito entre o final dos anos 1880 e o começo da década de 1890. Em 1892, Antonio Cesarino também morreu. Foi um momento delicado para a família, que sem os rendimentos do externato, encarou uma série de outras dificuldades. Ainda que a perseverança das mulheres dessa linhagem tenha tido resultados importantes, como a garantia do acesso à educação, foram poucos as e os descendentes dessa família que conseguiram manter uma posição estável e transmitir posses para gerações futuras. João Clímaco teve dois filhos sobre os quais não se tem pistas. Bartholomeu teve cinco filhos: João Cesarino, Aristides Cesarino, Gatino Cesarino, Alice Cesarino e Antonio Cesarino. Não tenho notícias sobre o que aconteceu com os três primeiros. A única filha mulher casou-se com um descendente de italianos – Affonso Massarotto – que tornou-se um comerciante promissor em Campinas e, por isso, essa parte da família conseguiu acumular alguns bens, como imóveis.
O outro filho de Bartholomeu, Antônio Ferreira Cesarino-neto, nascido em 1881, foi alfabetizado em casa pelas tias e pela mãe. Na juventude, frequentou o Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo e, depois, se casou com Júlia de Franco Andrade, uma quitandeira, mulher branca, que trabalhava nas ruas de Campinas. Ele foi professor do Colégio Culto à Ciência e, mesmo com uma ocupação de prestígio, não conseguiu ter casa própria. O professor recebia um salário de 200 mil réis, dos quais 115 mil réis eram destinados para o pagamento do aluguel. A quantia restante e os rendimentos da quitanda de Júlia tinham que ser divididos para sustentar os nove filhos do casal. Com muitas dificuldades, um do filhos de Cesarino-neto e Júlia, o Antonio Ferreira Cesarino Júnior, conseguiu realizar os estudos, ingressar na Faculdade de Direito do Largo São Francisco em 1924, se formar em 1928, cursar doutorado entre 1933 e 1934 e ser nomeado professor da Faculdade de Ciências Econômicas e Administrativas da mesma universidade em 1948.
Não se sabe ao certo qual foi o destino de Balbina-filha após o fechamento do externato. Certamente, teve dificuldades para se reposicionar no mercado de trabalho devido às mudanças que dificultavam cada vez mais a empregabilidade de mulheres negras, como mostro na minha dissertação – Mulheres negras, mercado de trabalho, racismo e sexismo (Campinas – 1876, 1892). Diferente das irmãs, Balbina-filha casou-se com Jeremias Antônio da Silva e foi mãe de seis filhos. Porém, ela acabou criando sozinha Antonio Cesarino Silva, Amancia Cesarino da Silva, Rita Cesarino da Silva, Benta Cesarino da Silva, Balbina Cesarino da Silva e Jeremias Cesarino da Silva, porque o marido também morreu cedo.
Como as suas ancestrais, Balbina-neta também atuou na educação. Em 1920, ela foi fundadora da escola municipal do Bairro Filipão e tornou-se professora dessa instituição de ensino. Ela ocupou o posto por onze anos, período que se dedicou com afinco para as alunas, alunos e para as melhorias nas condições do bairro, o que resultou numa destacada atuação na vida pública. Foram atribuídas a ela, por exemplo, as mobilizações para instalação de uma estação de trem em Filipão.
Mesmo conseguindo encontrar algum espaço no mercado de trabalho como professora, nem todas as irmãs de Balbina-neta tiveram a mesma sorte. Como eu analiso na minha dissertação de mestrado com mais detalhes, Rita Cesarino da Silva tornou-se uma empregada doméstica, mesmo sendo letrada – o que era algo pouco recorrentemente para as mulheres da época.
A despeito das interdições impostas pelo racismo e pelo sexismo, a trajetória da família Cesarino no passado foi marcada por dois aspectos importantes que refletem a experiência negra no final da escravidão e no pós-abolição: a resistência, por meio da luta pelo direito à educação; e o protagonismo feminino nesse processo. Em entrevista concedida para as pesquisas que eu tenho realizado sobre essa família, Flávia Cesarino Costa, professora do Departamento de Artes e Comunicação da Universidade Federal de São Carlos e tetraneta de Balbina Cesarino, a fundadora do Colégio Perseverança, destacou que reconhece a preocupação com o acesso à educação como uma questão que atravessa a história da sua família há mais de um século. A valorização dos livros pela família, como instrumentos de saber, remonta a uma história corrente na família (e que pode ou não ser verdadeira, mas é repassada a cada geração) de que Custódio Cesarino, pai de Antônio, era um ex-escravo que chegou a Campinas carregando apenas livros em seu cavalo.
Recorrente nos deparamos com afirmações que querem destacar a radicalidade das ações das mulheres negras, mas se baseiam erroneamente em ineditismos e trajetórias individuais. As histórias das mulheres da família Cesarino nos mostram experiências diferentes dessas e não deixam dúvidas do protagonismo das mulheres negras nas práticas de letramento, na docência e nos processos educacionais. Atuação se deu de forma coletiva e se tornou quase uma tradição dentro da comunidade negra, seja pelas mulheres que ocupavam posições de professoras, seja pela preocupação de nossas mães em nos incentivar a estudar e buscar caminhos melhores para o nosso futuro. Em memória de Balbina Cesarino, suas filhas e todas as nossas ancestrais, compartilho essas lembranças como forma de agradecimento a todas às mulheres negras que me ensinam.
Feliz dia das professoras!
Referências bibliográficas:
ANANIAS, Mauricéia. Propostas de educação popular em Campinas: “as aulas noturnas”. Cadernos Cedes, ano XX, n° 51. Novembro de 2020. p: 66 – 77. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ccedes/a/MjGRwHDBM6YBgxHYzwhnjhR/?lang=pt. Acesso: Maio de 2023.
ALMEIDA, Ian Coelho de Souza; CROCE, Marcus Antonio. Abolição, encilhamento e mercado financeiro: uma análise da primeira crise financeira republicana. Revista de Economia do Centro-oeste, v.2, n° 2, p. 19-36, 2016. Disponível em: https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/42432?mode=full. Acesso: Maio de 2023.
KABENGELE, Daniela do Carmo. A trajetória do “pardo” Antônio Ferreira Cesarino (1808-1892) e o trânsito das mercês. Tese (Doutorado em Antropologia). Universidade Estadual de Campinas, 2012. Disponível em: http://repositorio.unicamp.br/acervo/detalhe/868119?guid=1684960659505&returnUrl=%2fresultado%2flistar%3fguid%3d1684960659505%26quantidadePaginas%3d1%26codigoRegistro%3d868119%23868119&i=1. Acesso: Outubro de 2023.
SILVA SANTOS, Taina. Mulheres negras, mercado de trabalho, racismo e sexismo (Campinas, 1876,1892). Dissertação (Mestrado em História Social). Universidade Estadual de Campinas, 2023.
Taina Silva Santos
Mestra em História Social pela Unicamp
E-mail: [email protected]
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