Poder (ser) negro

Nem um único jornal português foi capaz de se lembrar que o país já teve um primeiro-ministro africano

Por José Eduardo Agualusa, do O Globo 

A tomada de posse do novo governo português, liderado pelo socialista António Costa, levantou um inesperado e interessante debate sobre raça, pertença e identidade, num dos países mais antigos e etnicamente coesos da Europa. O agora primeiro-ministro, António Costa, é filho de um poeta e ficcionista moçambicano de origem indiana, Orlando Costa, e de uma jornalista portuguesa, Maria Antónia Palla, que se distinguiu na luta pelos direitos das mulheres, incluindo o direito ao aborto. António Costa nomeou para ministra da Justiça uma angolana negra, Francisca Van Dunem, e para Secretário de Estado das Autarquias Locais o filho de um pequeno comerciante cigano, Carlos Miguel.

Os jornais portugueses passaram os últimos dias a esmiuçar a vida de Francisca Van Dunem. Todos destacam a competência e a seriedade da jurista, nascida em Luanda há 60 anos, que era até agora procuradora-geral distrital de Lisboa. Francisca descende de uma das mais antigas e poderosas famílias urbanas de Angola. A partir do século XVII não há praticamente nenhum episódio importante da História de Angola onde não esteja envolvido o nome de algum antepassado de Francisca. Os Van Dunem, como tantas outras famílias negras e mestiças de Luanda, fizeram fortuna traficando escravos para o Brasil. Além de comerciantes, destacaram-se também no campo militar e da política. Com a implantação da república em Portugal, em 1910, as velhas famílias negras de Luanda foram sendo afastadas dos círculos do poder. Muitas empobreceram. O regime salazarista tentou, ainda assim, uma reaproximação a estas famílias, nomeando elementos seus para cargos importantes na administração pública e na diplomacia. Na Assembleia Nacional, em Lisboa, nos anos 1950, havia vários deputados negros, entre os quais ao menos dois Van Dunem.

Nem um único jornal português foi capaz de se lembrar que o país já teve um primeiro-ministro africano — no caso, cabo-verdiano — embora apenas durante três dias. Aconteceu em 1926. Martinho Nobre de Melo, nascido na Ilha de Santo Antão em 1891, chegou a defender, na juventude, a causa africana. Veio a ser, mais tarde, embaixador de Portugal no Rio de Janeiro.

Na Europa, nos dias que correm, há vários países com ministros negros e mestiços. A França é, creio, o país europeu com mais políticos de origem africana. Logo em 1887, o afro-cubano Severiano de Heredia, foi nomeado ministro do trabalho. A atual ministra da Justiça, Christiane Taubira, nascida na Guiana, é também ela de origem africana. Reino Unido, Itália e até a “loira” Suécia têm deputados e ministros negros.

Antes de chegarem ao poder, os afrodescendentes europeus conquistaram o mundo da cultura. A música popular, em França, Reino Unido ou Portugal, não existiria sem a contribuição africana. A seguir veio a literatura. O que aconteceu no Reino Unido, com Zadie Smith ou Bernardine Evaristo (que se afirma descendente de antigos escravos brasileiros que teriam retornado à região onde se situa hoje a Nigéria), está agora a acontecer em Portugal. Não por acaso as mais recentes revelações da literatura portuguesa, Djaimilia Pereira de Almeida e Bruno Vieira Amaral, são de origem angolana. Djaimilia, filha de mãe angolana e pai português, nasceu em Luanda, em 1982, e cresceu em Lisboa. O título e o subtítulo do seu primeiro romance dizem quase tudo: “Esse cabelo — A tragicomédia de um cabelo crespo que cruza a história de Portugal e Angola”. O romance, que tem recebido rasgados elogios dos principais críticos literários do país, navega entre o ensaísmo e um registo autobiográfico, contando a história de uma menina que pouco a pouco se descobre negra. O romance de estreia de Bruno Vieira Amaral, filho de pai angolano e mãe portuguesa, “As primeiras coisas”, decorre num bairro imaginário da periferia de Lisboa, onde se misturam negros e brancos. “As primeiras coisas” ganhou os mais importantes prémios literários de Portugal, incluindo o Prémio Saramago, destinado a jovens escritores.

Comparando com Portugal, cuja população negra não chega sequer aos dez por cento, o Brasil parece ainda muito, mas mesmo muito atrasado, no que diz respeito à completa integração dos afrodescendentes — que são a maioria. Para desracializar a sociedade, para que a cor da pele de um ministro ou de um presidente não seja notícia, é preciso, primeiro, que isso se torne parte da norma.

Integrar implica a partilha de poder. Implica também a partilha de recursos, de forma a que todas as pessoas tenham as mesmas possibilidades no acesso à educação e à cultura. O que o poder negro quer é apenas poder ser negro.

 

 

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