Quem cala é cúmplice: o que racismo nos EUA e atos anti-STF têm em comum

Enviado por / FonteMaria Carolina Trevisan

“Ficar em silêncio, sem interferir, é ser cúmplice”, disse o chefe da polícia de Minneapolis (EUA), Medaria Arradondo, ao afirmar que todos os quatro policiais envolvidos no assassinato de George Floyd foram demitidos e deveriam ser julgados e punidos. Floyd, um homem negro, foi morto por um policial branco, Derek Chauvin, diante de outros três oficiais, que nada fizeram nos oito minutos em que durou seu sufocamento.

Arradondo deu essa resposta ao vivo a uma emissora de TV, neste domingo (31 de maio), ao ser questionado pelo irmão de Floyd sobre justiça, em uma entrevista comovente, no meio dos protestos contra a violência racial que tomaram os Estados Unidos. O chefe da polícia de Minneapolis é negro. É o primeiro homem negro a alcançar a chefia do departamento de polícia da cidade do estado de Minnesota, que tem longo histórico de violência racial. Arradondo levou 28 anos até conseguir alcançar o topo da carreira em sua cidade. Nesse período, processou o departamento de polícia por preconceito racial pela dificuldade de receber salários e promoções, e como líder da polícia local vem combatendo o racismo da polícia.

Quase 19% da população de Minneapolis é negra. O racismo está presente em tudo e se torna risco de vida quando é associado a forças de segurança: lá é 8,86 vezes mais provável que uma pessoa negra seja detida pela polícia por desordem do que uma pessoa branca e é 11,5 vezes mais possível que um negro seja preso portando maconha do que um branco, de acordo com dados do FBI. A desigualdade racial também se dá em termos de falta de emprego: o Minnesota figura entre os cinco estados americanos com maior distância de taxas de desemprego entre brancos e negros.

O racismo é sistêmico e persistente em qualquer lugar do mundo. Opera na certeza da impunidade e da tolerância com atos como os que ceifaram as vidas de Floyd e também do garoto João Pedro, no Rio de Janeiro.

A Covid-19 escancara o racismo: nos Estados Unidos, é três vezes mais provável que uma pessoa negra morra em decorrência da doença do que uma pessoa branca. No Brasil, pretos e pardos sem escolaridade morrem quatro vezes mais acometidos pelo novo coronavírus do que brancos com nível superior, segundo estudo da PUC-RJ divulgado em maio.É o racismo com todas as suas dimensões sobrepostas. A falta de acesso à saúde e ao emprego aumentam a desigualdade racial. A violência policial aprofunda a injustiça racial.

Covid-19: Percentual de óbitos ou recuperados por Raça/Cor

Foi essa soma que criou condições para que uma parte da população dos Estados Unidos se indignasse e tomasse as ruas. Lá, como aqui, a omissão e a negligência dos governos Trump e Bolsonaro com a Covid e com a desigualdade racial expuseram nossas sociedades à morte. Um meio fundamental de enfrentar o racismo e suas consequências são as políticas públicas, que diminuem os abismos da desigualdade racial. Deveriam ser prioridade em um país como o Brasil, cuja população negra corresponde a 55,8% do total. Para isso, é importante que os negros ocupem os espaços de poder. O movimento negro brasileiro vem endereçando essa questão há anos (não é verdade que aqui não há protestos).

Um tuíte publicado por Filipe Martins, assessor especial da Presidência da República para assuntos internacionais, revela que Jair Bolsonaro conversou com Donald Trump na tarde desta segunda-feira (1º de junho). Segundo ele, os dois falaram sobre “conjuntura internacional pós-pandemia e a criação de um G-7 expandido p/ avançar as causas da democracia, da liberdade e da prosperidade em nossos países”.Trump passou os últimos dias lidando com os protestos que se espalharam pelo país. Chegou a dizer que, se as manifestações não cessarem, colocará forças militares para obrigá-las a parar, mesmo que não esteja claro que ele pode fazer essa convocação. Afirma que os manifestantes são vândalos. Não se sabe ao certo quantos são os infiltrados, no entanto.

Fato é que Bolsonaro se espelha em Trump, assim como os adoradores de ambos. Não à toa, vimos pessoas mascaradas empunhando tochas em marcha diante do Supremo Tribunal Federal na madrugada deste domingo (30 de maio). A imagem remete às manifestações de supremacistas brancos nos Estados Unidos, como a de Charlottesville (Virgínia), e às atrocidades cometidas pela Ku Klux Klan. No domingo, no protesto antifascista da avenida Paulista, em São Paulo, pessoas caminhavam com bandeiras de grupos neonazistas da Ucrânia sem se sentirem constrangidas.

O que as manifestações antirracistas atuais dos Estados Unidos nos ensinam neste momento é que o problema – a crueldade do racismo – é tamanho que, para enfrentá-lo, é preciso que essa seja uma demanda de toda a sociedade, não apenas do povo negro. “A liberdade do povo negro é a liberdade de todos”, me disse, certa vez, a feminista negra Patrícia Hill Collins. Frear violações, proteger a população negra, diminuir a desigualdade e a injustiça racial é responsabilidade de todos nós.

Por isso, como disse o chefe da polícia de Minneapolis, Medaria Arradondo, “ficar em silêncio é ser cúmplice.”

* A jornalista Maria Carolina Trevisan é membro do Núcleo Afro – Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

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