101 crianças mortas a tiros no Rio desde 2007: ‘Sei o que mãe da Eloah está vivendo’

Enviado por / FontePor Wilson Tosta, da BBC

Sempre que vê casos como o da menina Eloah da Silva Santos, morta na semana passada aos 5 anos por uma bala perdida durante uma operação policial, Vanessa Francisco Sales costuma falar: “Eu sei o que esta mãe está vivendo”.

Quase quatro anos atrás, foi ela, moradora do Complexo do Alemão, na zona norte carioca, que viveu tragédia semelhante.

Um tiro matou a filha dela, a pequena Ágatha Vitória Sales Félix, uma garotinha negra, de cabelo farto e sorriso largo, aos 8 anos.

A explicação oficial foi que o disparo foi feito por um policial militar contra “suspeitos”.

O crime, cometido em setembro de 2019, até hoje não foi a julgamento — e Vanessa diz que vive um dia de cada vez.

Um dos desafios é enfrentar as recordações, que são inevitáveis.

“A minha vida é uma lembrança”, diz ela à BBC News Brasil.

“Minha filha se foi. Ela morava comigo, uma criança. Ali se passou tudo com ela, naquele local. Ninguém quer voltar, ninguém quer viver aquilo. Porque vai ter lembranças, tem lembranças, sempre existirão lembranças. Em todo momento… Neste momento, tenho lembranças. Então, assim, a minha vida serão lembranças.”

Enfrentar as recordações foi justamente um dos desafios de Vanessa.

Ela mora na localidade conhecida como Alvorada, no Complexo do Alemão, no mesmo local onde Ágatha nasceu e viveu até os 8 anos.

Voltou para lá, após um período de afastamento que se seguiu à morte da filha.

“Fiquei oito meses sem voltar para a minha casa”, conta. “Mas depois tive que voltar. Consegui continuar vivendo a minha vida aqui fora.”

Ágatha e Eloah são parte de uma estatística macabra. Desde 2007, 101 crianças e adolescentes, com idades de zero a 14 anos, foram assassinadas no Rio de Janeiro, segundo a ONG Rio de Paz.

Foram baleadas em ações policiais, em confrontos das forças de segurança com criminosos e em disputas entre bandidos. Em 2023, já foram onze vítimas assassinadas nessa faixa etária no Estado, contra quatro em 2022.

Eloah foi baleada e morta em casa, na Ilha do Governador, em 12 de agosto.

Na noite de 20 de setembro de 2019, Ágatha Félix foi baleada nas costas quando voltava de um passeio em uma kombi de transporte coletivo na localidade da Fazendinha, no Alemão.

O veículo estava parado para que passageiros descessem. Um PM atirou quando homens passaram em uma motocicleta.

A Polícia Militar, na época, alegou que foi um revide contra criminosos que teriam disparado.

Testemunhas, no entanto, negaram ter havido troca de tiros. Segundo investigações da Polícia Civil, o policial teria confundido uma barra de alumínio, levada pelo garupa, com um fuzil, e atirado contra o “traficante”.

Protesto contra violência policial após morte de Ágatha em 2019 (Foto: GETTY IMAGES)

‘Lembranças’

Vanessa evita lembrar detalhes do dia da morte de Ágatha.

“Se eu ficasse lembrando, não ia conseguir continuar vivendo como eu vivo hoje, tentando sobreviver à tragédia que foi, na minha vida, a ida da minha filha”, afirma, ao comentar como se sente ao saber, pela imprensa e pelas redes sociais, de mortes de outras crianças baleadas.

Um dos pontos que inquietam Vanessa é a repetição, em outros casos, de circunstâncias semelhantes àquelas que levaram Ágatha à morte.

“Não que sejam todos da mesma forma, mas partindo da mesma situação, de um tiro, de alguém que deveria te proteger de uma situação”, diz.

“Eu sempre vou lembrar. Não tem como isso apagar da minha vida. Infelizmente, a cena se repete com o passar dos dias, com o passar do tempo. Infelizmente, está acontecendo. Enquanto não houver, enquanto não tiver políticas públicas inteligentes, isso não vai acabar.”

Segundo ela, mães de outras vítimas de crimes semelhantes, com quem tem contato, não costumam falar muito dos novos episódios que resultam em mortes de crianças e adolescentes.

“Porque cada um tem o seu caso, então, se a gente for juntar os casos.”, explica.

“A gente não fica falando porque já é uma coisa tão dolorosa. A gente tem momentos que vai comentar ‘infelizmente, lamentável’, mas a gente não fica falando. Porque mexe muito com a mãe, com a família naquele momento.”

Aos 36 anos, Vanessa não teve outros filhos — nem faz planos de tê-los, embora não descarte a possibilidade. Religiosa, afirma ter colocado Deus em primeiro lugar.

“O que Ele desejar para mim, se for para ter mais três, trigêmeos”, diz.

“Mas eu não fico planejando, não consigo pensar à frente. Hoje, eu quero estar com minha saúde mental intacta, equilibrada, a minha saúde também física. Estou priorizando isso, a minha saúde espiritual, mental e física. E o meu casamento. Então, são as coisas que estou priorizando hoje. Isso inclusive acho que vai ter consequência numa vida boa, numa vida trabalhada, (…) superando a cada dia.”

“Hoje escolhi estar viva”, afirma, com a voz em tom sereno. “Só por isso estou aqui falando com você.”

Família no funeral de Ágatha, em 2019 (Foto: GETTY IMAGES)

‘Nada novo’

O fundador da ONG Rio de Paz, Antônio Carlos Costa, diz que “nada do que vivemos é novo”.

Desde a fundação da organização, em 2007, os episódios violentos têm, segundo ele, um ciclo que passa pela indignação, silêncio e esquecimento. Esse é, na sua opinião, o destino, em poucos dias, do mais recente desses crimes: o assassinato de Eloah.

Isso acontece, diz Costa, porque a sociedade se omite, já que “90% dessas mortes ocorrem dentro de comunidades pobres”. E a sociedade, acusa ele, quer isso.

“Não estou dizendo que a sociedade quer que as crianças morram”, explica. “Mas que quer uma polícia truculenta, quer tiro, pancada e bomba.”

Costa afirma que os políticos sabem que, se prometerem em campanha eleitoral que vão “endurecer com os bandidos”, conseguem muitos votos. São, inclusive, instruídos por profissionais de marketing a fazer esse tipo de promessa, ele diz.

E a sociedade se mantém silente, encarando as mortes de crianças como “efeitos colaterais” de uma guerra à criminalidade, acusa.

Ele também questiona qual país civilizado tem o histórico da polícia brasileira de envolvimento em episódios com mortes de crianças.

“Não vejo como mudar isso sem muita pressão da sociedade, sem muita pressão dos meios de comunicação”, afirma.

Para ele, além de programas sociais, é preciso uma profunda reforma da polícia, o que é outro problema. “Ninguém encara a polícia, a reforma da polícia vai desagradar muita gente.”

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