Com um pincel em uma mão e um cigarro na outra, a tela repousada em declive e a janela aberta para a antiga Praça Onze —ponto de encontro de sambistas e das escolas de samba em seus primórdios—, o músico, figurinista, marceneiro e, claro, desenhista e pintor Heitor dos Prazeres, já conhecido na música, retrata cenas que narram o Rio de Janeiro nos seus primeiros anos do século 20. Mas não qualquer história da antiga capital da República.
Nascido dez anos após o fim da escravidão, negro, militante de esquerda e membro do Partido Comunista Brasileiro, o PCB, Heitor dos Prazeres criou uma obra em tela, por meio de traços fortes e paleta harmoniosa, na qual conhecemos o Rio não pelos casarões de Botafogo ou pela praia de Copacabana.
O seu Rio de Janeiro era dos trabalhadores rurais das zonas norte e oeste do Rio de Janeiro. Pelas mulheres negras estirando as roupas nos varais das áreas rurais. Das “Crianças com Balão”, de 1961. Dos trabalhadores negros em seus momentos de lazer: no bilhar, no samba ou no carnaval, como em “Arlequim”, sem data. Dos morros.
“Os modelos eram as pessoas que viviam em volta dele. Ele era muito inspirado por onde ele vivia. Tudo memória”, conta o músico e artista Heitor dos Prazeres Filho, aos 81 anos, sentado de bengala e chapéu, num dos espaços expositivos da mostra no Centro Cultural Brasil do Brasil, no Rio de Janeiro.
“O Heitor está compondo uma paisagem que lhe é próxima e familiar. Apresenta um olhar moderno da vida negra. O mundo do trabalho. A infância negra. É emancipador que crianças negras possam ser só crianças”, afirma Raquel Barreto que assina a curadoria com Pablo León de La Barra e Haroldo Costa, que conviveu com Heitor e esteve presente em sua última exposição, a coletiva “1º Festival de Artes Negras”, no Senegal, em 1966.
Com mais de 200 obras, a mostra reúne, além da produção pictórica do artista, parte do seu mobiliário, seus figurinos, partituras, além de documentos e reportagens que narram sua trajetória, uma delas assinada pelo cronista Rubem Braga.
Heitor dos Prazeres, com uma caixa de engraxate que ele mesmo criou e jornais que vendia, cresceu em um Rio de Janeiro onde Machado de Assis dizia suas últimas palavras e Lima Barreto suas primeiras.
Pixinguinha definia os acordes do choro —aos quais Heitor contribuiria com os 16 acordes do cavaquinho— e João do Rio, escritor, jornalista e dramaturgo negro e gay, renovava a imprensa e revelava diversas faces de um novo Rio que surgia.
Mais interessado na alma encantadora das ruas, do que no estudo formal, gostava de preencher os espaços do caderno com cores e foi parar numa Escola para Menores, devido a seus sumiços. Lá, nasceu o artista versátil a partir das aulas de tipografia, marcenaria e tipografia.
“Ele fazia bola de meia para jogar futebol”, diz o filho, isso numa época que a prática futebolística era malvista e proibida para os negros. Lima Barreto, por exemplo, a criticava com violência. Nas aulas “ele ficava colorindo”.
A pintura nasce desse garoto que coloria os cadernos e que vai aprender alfaiataria. Ligado à música desde o início de sua vida, numa época em que o choro se firma como linguagem musical e o samba urbano se estabelece e se diversifica, Heitor começa a criar as indumentárias para as incipientes escolas de samba. Vem dele, precisamente, o azul e branco da Portela.
“Heitor sempre usou azul e branco em seu grupo”, afirma o filho. Esse lado criança, de certo modo, nunca o abandonou. Nos natais, Heitor adquiria brinquedos direto das fábricas, num Rio de Janeiro mais industrializado que o de hoje, e se vestia de Papai Noel para distribuir presentes às crianças da região da Gamboa, onde passou toda sua vida.
Vem dele —que chegou, inclusive, a frequentar a casa de Tia Ciata, a matriarca do samba— o epíteto de Pequena África ou África em miniatura, conforme afirma o compositor Sinhô, para a região.
O artista se encontrava também com o militante político do PCB, com apresentações para operários e militantes. O que apresentou sua conta após o golpe militar de 1964.
O artista, funcionário da antiga Rádio Nacional, foi afastado da estatal, junto de nomes como os dramaturgos Oduvaldo Vianna e Dias Gomes, a cantora Nora Ney e o compositor ator Mário Lago, de quem era grande amigo, e viveu tempos duros.
“Fui criado ali”, conta Heitor dos Prazeres Filho, que admite que a cassação foi um golpe duro para o pai, que morreria dois anos depois. Já estava, no entanto, consagrado. Havia participado da 1ª Bienal de Arte de São Paulo, na qual foi premiado, exposto na quarta edição da mesma, criado figurino para o Balé do 4º Centenário da capital paulista, em 1954, que foi restaurado e é agora exposto pela primeira vez.
Seu prestígio o levou a ser recebido pelo presidente Getúlio Vargas e ao 1º Festival de Artes Negras, que o emocionou especialmente.
No entanto, não foi o suficiente para colocá-lo no centro da arte brasileira. Assim como Djanira da Motta e Silva, Heitor, apesar do traço firme, do universo bem estabelecido e da paleta harmônica, foi relegado a um lugar tão suburbano quanto os habitantes de suas telas e canções. Uma injustiça que a mostra desfaz.