Ser negro não é superficial: a hermenêutica jurídica da branquitude a serviço das fraudes nas cotas raciais.
“Não tolero o magistrados que do brio descuidado venda a lei, trai a justiça – Faz a todos injustiça – Com rigor deprime o pobre e Presta abrigo ao rico, ao nobre. E só acha horrendo o crime No mendigo que deprime.”
Luiz Gama
O Jornal Diário Popular trazia na tarde de ontem (15/02/17) a seguinte manchete “Alunos da Medicina conseguem voltar à UFPel. Sete alunos, suspeitos de fraudar o sistema de cotas raciais, obtiveram na justiça o direito de reassumir suas vagas”.
Por Gleidson Renato Martins Dias, do Sul21
A decisão da 2ª Vara Federal de Rio Grande, referente ao PROCEDIMENTO COMUM Nº 500377-75.2017.4.04.7101/RS o qual suspende os efeitos da decisão administrativa da reitoria da UFPEL que afastou aluno branco do curso de medicina é mais uma demonstração que o Judiciário brasileiro bebe da fonte da Hermenêutica Jurídica da Branquitude barrando os avanços contra o racismo e a discriminação racial. A catastrófica decisão mostra que o Estado brasileiro ignora temas tais como: : raça-sociológica, racismo e antirracismo. Os quais são indispensáveis para falarmos (não retórica, mas materialmente) em Estado Democrático de Direito.
Costumo salientar que a Hermenêutica Jurídica da Branquitude é o fenômeno pelo qual, em qualquer possibilidade de interpretação, quando a matéria refere-se a questões raciais, a interpretação, na enormidade das vezes, prejudicará o avanço do combate ao racismo. HJB é a base ideológica (consciente ou inconsciente, direta ou indireta) que afeta os operadores jurídicos latu senso, isto é doutrinadores, ministros, desembargadores, juízes, promotores, defensores públicos, advogados, delegados e servidores da Administração Pública. Ao analisarem e/ou produzirem algum regramento e/ou posicionamento jurídico não raras vezes irão materializar uma das formas do Racismo Institucional.
Em outras palavras da para explicar da seguinte maneira: havendo possibilidade de interpretação esta interpretação será contrária aos interesses do combate ao racismo. Ela se esconde na tecnicidade (a tecnicidade sempre é apresentada como imparcial, sempre foi utilizada para justificar injustiças e para blindar governantes, políticos, juristas, etc) a tecnicidade esconde a subjetividade a objetividade.
A Hermenêutica Jurídica da Branquitude também se debruça na ignorância e/ou falta de comprometimento de não-negros em estudarem o fenômeno racial (omissão). Bebem da fonte que acredita (real ou retoricamente) na inexistência do racismo ou da vitimização de negros, faz leitura superficial do fenômeno social racismo e todos estes fatos e fatores influenciarão na metodologia interpretativa e, por conseguinte, no resultado final, seja ele um ato administrativo, um despacho, uma sentença ou acórdão.
O que deve ser entendido é que o Brasil (Estado e sociedade) tem como cultura negar a existência do racismo. A “Negação do Brasil”, nas palavras do pesquisador Joelzito Araújo do Santos em livro de mesmo nome pode ajudar a entender a cultura da negação do racismo estrutural e estruturante na sociedade brasileira e por conseguinte nos operadores do Direito. Aliás, se a sociedade brasileira reproduz o racismo, de várias formas, seria, no mínimo, ingênuo acreditarmos que no meio jurídico seria diferente.
Os argumentos da decisão não deixam dúvidas: “excluí-lo unicamente com base na sua aparência física encerraria conduta preconceituosa e discriminatória fundada numa impressão superficial e quiçá equivocada”. (grifei). (pag. 4. PROCEDIMENTO COMUM Nº 500377-75.2017.4.04.7101/RS).
Impressão superficial? Ora. Ser negro não é subjetivo não é superficial é exatamente ter aparência de negro, seja ele bem escuro (cor de pele negra) ou cor de pele mais clara (pardo), mas tendo, por óbvio, outros traços negróides, tais como cabelo, nariz, boca e todas outras características visíveis e conhecidas desta população racial. A sociedade brasileira sabe muito bem que é negro/a, pois reservou esta parcela da população os piores empregos, os piores salários, a sub-humanização a sub-cidadania e a inexistência inclusive no Judiciário seja enquanto servidores ou magistrados/as.
E mais, se a política é para determinada população é lógico que constatado população diversa deve ser excluída do benefício. Nunca poderia ser confundido com conduta preconceituosa e discriminatória e sim justa, necessária, fundamental.
Noutra passagem vemos: “Assim, além do critério isolado de cor da pele, a análise acerca do enquadramento para fins de ser beneficiado deve passar pela análise do contexto histórico, político e social do candidato, que pode sofrer atualmente os efeitos decorrentes da história de sua família” […] “No caso concreto, o autor respondeu à comissão que se entendia pardo devido à sua ascendência, especialmente em sua avó por parte de pai, ser negra.” (pag. 5). Fica notória a confusão entre cotas sociais e cotas raciais. Se o problema é raça ou classe. Algo já superado pelo Movimento Negro e pela academia desde a década de 1970.
Derradeiro destacarmos a preocupante conclusão, In verbis: “Mais um erro da comissão foi identificar pardo com negro, pois não se tratam do mesmo conceito” (pag. 5). Entre todos os equívocos este me parece o mais assustador, pois fere mortalmente a função teleológica da política de cotas raciais.
Ora, um indivíduo não-negro que entra numa vaga destinada a pessoa negra, desvia a função teleológica da política de cotas raciais, pois esta, como sabemos, tem por escopo o de corrigir distorções históricas e ainda, o de alcançar determinados efeitos jurídicos, tais como: Justiça Compensatória, Justiça Distributiva e Promoção do Pluralismo Racial. Conforme orientação do STF na ADPF nº 186. Não se alcançaria tais efeitos se, por exemplo, pessoas fenotipicamente brancas, por mais que possam ter reais ligações (culturais, filosóficas, religiosas) com a raça-sociológica negra, adentrassem por intermédio de cotas raciais nas universidades e/ou concursos públicos, pois, estes espaços permaneceriam espaços com extrema desigualdade racial.
Para enfrentarmos este ponto lembremo-nos dos ensinamentos do Dr. Hédio Silva Jr., o qual destaca que a Constituição Federal adota vários critérios para demarcar a diversidade étnico-racial tais como: cor no art. 3º, IV e art. 7º, XXX; raça no ar. 3º, IV; etnia art. 242, § 1º e também o adjetivo afro-brasileiros encontrado no art. 215 §1º.
Esta tendência, lembra o jurista, é observada nas Declarações e Convenções Internacionais onde os vocábulos cor e raça são encontrados no art. 2º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, no art. 1º na Declaração sobre Raça e Preconceito Racial, e no art. 1º da Convenção Internacional sobre Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial.
Na Legislação infraconstitucional não é diferente a Lei Estadual nº 13. 694 de 19 de Janeiro de 2011, a qual instituiu o Estatuto da Igualdade Racial e de Combate à Intolerância Religiosa do Estado do Rio Grande do Sul, por exemplo, utiliza o vocábulo negro, agrupando nesta terminologia o preto, o pardo e o mestiço de ascendência africana (art. 1º § 3º).
O Brasil, ao longo da efetivação da política de cotas, adotou várias nomenclaturas, entre elas: afrodecendentes, afrobasileiros, e por ultimo (e mais utilizados) os termos pretos e pardos. A grande dificuldade, neste quesito particular, pode ser notada pela mistura de possibilidades interpretativas. Preto e pardo não são raças (nem mesmo sociológicas) e sim cor de pele. A pessoa com cor de pele preta sempre será negra, o mesmo não acontece com uma pessoa com a cor de pele parda. Já existem vários precedentes administrativos inclusive jurisprudência no Tribunal Federal utilizando hermenêutica condizente com o combate ao racismo abordando esta controvérsia. “A autodeclaração, por si só, representa porta aberta à fraude. (…) Considerando que as cotas raciais visam a reparar e compensar a discriminação social eventualmente sofrida pelo afrodescendente, para que dela se valha o candidato, faz-se mister que possua fenótipo pardo. Se não o possui, não é discriminado e, consequentemente, não faz jus ao privilégio para o ingresso acadêmico” diz o Desembargador Federal Luís Alberto D Azevedo Aurvalle na Apelação Cível nº 5001510- 23.2015.4.04.7102/RS.
A fim de encaminhar um entendimento sobre a terminologia “pardo” podemos concluir que o vocábulo pardo, pode, portanto, ser entendido, no mínimo, de duas formas: A) pardo enquanto cor e, B) pardo enquanto raça-sociológica, enquanto pertencimento racial.
Não por acaso alguns registros utilizam o termo raça-cor. Reforçando que existem (ou pode existir) mais de uma cor visível, dentro da mesma raça-sociológica.
Ex: a) preto e pardo, ambos dentro da raça negra; b) branco, moreno e loiro ambos dentro da raça branca.
Aliás, se quisermos ser extremistas, poderíamos dizer que não existe pessoa branca. Mas quando falamos em pessoa branca está subentendido que falamos da raça (sociológica) e não da cor. Ninguém espera encontrar alguém da cor de uma folha de papel. Com os vocábulos preto, negro, pardo, amarelo não é diferente. A cor pode deve entendida como nome técnico da raça-sociológica
Este nos parece ser o cerne de uma interpretação que tenha real compromisso com o combate ao racismo e defesa da função teleológica das cotas raciais.
O Direito não faz regras (em nenhuma área) que seriam de forma indiscriminada a todos e todas. Parte-se de uma regra geral para que a partir dela analise-se caso a caso e a partir desta análise se posicionar se determinado litígio tem ou não guarida legal, no caso concreto. Com a política de cotas raciais não se pode exigir algo diverso ao que é natural ao direito.
Neste particular, a política de cotas raciais, tem uma função, um princípio, e com base nestes princípios (Justiça Compensatória, Justiça Distributiva e Promoção do Pluralismo Racial) analisar caso a caso para verificar se determinado/a candidato/a com cor de pele parda tem as feições negróides (cabelo, nariz, entre outras exterioridades típicas da raça negra) as quais geralmente são utilizadas para discriminação e perda de oportunidades fazendo destes traços pela primeira vez na história do país um benefício.
Qualquer interpretação que não entenda estes princípios irá (intencionalmente ou não) fortalecer o racismo e a fraude.
Resta-nos ratificar que tal política é ressente e que tais dúvidas são o fruto de séculos de descaso do próprio Estado no que se refere a um combate real ao racismo, a discriminação racial, a desigualdade racial e ao preconceito racial.
As cotas raciais representam uma revolução democrática e combater a Hermenêutica Jurídica da Branquitude é combater a utilização do Direito enquanto manifestação ideológica do Estado brasileiro, na construção e manutenção do racismo e da discriminação racial nas suas mais variadas formas de manifestação.
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Gleidson Renato Martins Dias é bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela PUCRS, Pós-Graduando em Direito Público pelo IDC, Militante dos Direitos Humanos e Movimento Negro.