Em “Imagens da Escravidão Afro-atlântica: O Outro do Outro”, Lilia Schwarcz desconstrói estereótipos criados pelas representações permeadas de metas e padrões europeus.
Do Goethe
1. A IMAGEM QUE TEMOS DA ESCRAVIDÃO É CONSTRUÍDA
O Brasil foi a última nação a abolir a escravidão na América, permitindo a artistas estrangeiros documentar a história africana no País em desenhos, gravuras, pinturas e fotografias. Esses registros foram divulgados pelo mundo como retratos da trajetória das nações africanas trazidas ao continente. “São elementos que carregam intenções visuais europeias em que artistas reproduzem uma visão colonial passível de ser adaptada a qualquer lugar”, afirma Lilia Schwarcz. Repetidas, copiadas e aplicadas a novos contextos, essas imagens revelam a política de dominação ao retratar pessoas escravizadas: africanos fortes, sem sapatos, com poucas roupas, sendo disciplinados, levando cargas pesadas, seguindo e servindo seus mestres bem vestidos.
2. A HISTÓRIA FOI RETRATADA DE FORMA A ANIQUILAR A INDIVIDUALIDADE DOS ESCRAVOS
Essas obras de arte – muitas criadas por nomes notórios, como Debret e Rugendas – guardam detalhes pouco comentados mas fundamentais na compreensão do Brasil. “Não havia espaço para individualidade, rebelião, fugas, quilombos – estes eram raramente retratados”, explica Schwarcz. “São imagens que retratam a invisibilidade e o anonimato”, complementa. Numa ilustração quase maternal da escravidão, revela-se uma relação baseada na violência e afeição, com indivíduos agrupados no anonimato e com “nações reduzidas a blocos biológicos em vez dos vários povos que fazem parte da diáspora”.
3. AS INTERPRETAÇÕES ARTÍSTICAS DA ESCRAVIDÃO PERPETUAVAM A DOMINAÇÃO
Havia um papel didático e que compunha o espetáculo da escravidão. Eram declarações de que a hierarquia existia e poderia ser mantida, “criava uma ordem a ser copiada e naturalizava a dominação violenta de outros povos”, nas palavras de Schwarcz. Assim, essas imagens são e foram responsáveis por ilustrar a visão que os brasileiros tinham e têm do País e da escravidão.
4. A FOTOGRAFIA DEIXOU ESCAPAR A INDIVIDUALIDADE SUFOCADA
Com o surgimento da fotografia, cópias mais fiéis da história começaram a ser divulgadas. Essas imagens retratam a prosperidade de famílias com nome e sobrenome, crianças brancas interagindo com pessoas escravizadas, tratadas como indivíduos sem identidade, fantasmas desumanizados. Mesmo sendo controladas pela elite e pelo fotógrafo, as imagens ofereciam uma convenção visual na qual emergiram detalhes reais da cena idealizada pelos colonizadores. Tornou-se então possível ver outras expressões dessas pessoas, a forma como se vestiam e se comportavam. São manifestações que trazem uma revisão ampla do padrão de comportamento, do trabalho, da diligência e da submissão. Nelas, o desconforto é notável, o constrangimento é visível.
5. A RECONCILIAÇÃO CRIADA COM A ABOLIÇÃO DA ESCRAVIDÃO É UMA FARSA
Com a abolição da escravidão, surgem novos padrões imagéticos, retratando a reconciliação, do ponto de vista branco-europeu: “os escravos mostram gratidão, como se a liberdade não fosse um direito”, diz Schwarcz. Iniciou-se também a denúncia do sistema escravocrata, que identifica o engajamento do artista, em imagens de situações bizarras, de pessoas sendo comercializadas. Por outro lado, persiste uma abordagem condescendente, com negros agradecendo a liberdade. Esse processo nega a história, mesmo no movimento de emancipação, criando uma “amnésia nacional da escravidão”, como afirma Schwarcz.
6. AS IMAGENS DA ESCRAVIDÃO SE REPETEM EM ACONTECIMENTOS ATUAIS
Durante a palestra de Lilia Schwarcz, algumas das obras mostradas foram associadas a fatos contemporâneos: a história de um adolescente afrodescentende (nome não revelado por ser menor de 18 anos) amarrado em um poste e açoitado, em 2014, no Rio de Janeiro, como se fazia no pelourinho; uma cena do seriado “Raízes” (de Alex Haley, William Blinn, Ernest Kinoy, M. Charles Cohen, James Lee, 2016), que mostra policiais amarrando um grupo de afro-brasileiros em uma corda em sequência, como se fazia com escravos; uma cena do desenho animado “Casa Grande e Senzala” (adaptação da TV Cultura para o livro de Gilberto Freyre, dos nos anos 1980), que mostra a babá carregando uma menina nas costas, como se fosse um cavalo, em uma brincadeira que ensina às crianças ser possível mutilar outras pessoas; a adolescente que fez, em 2018, sua festa de debutante em Recife, Pernambuco, com o tema “escravidão”; e o assassinato da vereadora Marielle Franco, também em 2018. Moradora da comunidade da Maré, no Rio de Janeiro, Marielle teve acesso à universidade pelo sistema de cotas e foi assassinada em um crime ainda sem solução.
7. É PRECISO POLITIZAR AS IMAGENS DA ESCRAVIDÃO
Apesar de velado, o fantasma da escravidão é real no Brasil. “Ao contrário do que é perpetuado, o País não é um caldeirão cultural sem preconceitos. Vivemos em uma democracia racial cercada de racistas por todos os lados”, constatou Lilia Schwarcz . O sistema de cotas na universidade mudou este cenário, mas ainda é um começo. Segundo ela, precisamos politizar essas imagens que não vivem no passado, pois a cultura não é consequência ou produto, mas sim uma produção.