Sobre cabelos, relacionamentos e outras coisas!

Após uma atividade na minha universidade em celebração ao mês da Consciência Negra, reuniu-se em uma mesa de bar, o palestrante, um homem negro casado com uma mulher branca, uma mulher negra casada com um homem branco, uma mulher branca casada com um homem negro e uma mulher negra não casada, que escreve esse texto. Estávamos no mês da Consciência Negra, a palestra da noite foi sobre isso, e a conversa oscilou entre cabelos como forma de identidade e os relacionamentos afetivos inter-raciais entre outras coisas.

Dois pontos me chamaram atenção naquela mesa de bar.

Falando sobre cabelo! Quando o assunto passou a ser a questão do cabelo natural, [afinal ou os negros estão sempre falando de cabelo ou estão os brancos falando dos nossos cabelos] o homem negro, casado com a mulher branca, foi o maior defensor da estética dos cabelos naturais, do cabelo black-power – elemento explorado na sua fala daquela noite – e o principal crítico do fato de mulheres negras usarem os cabelos alisados.

Depois que nos despedimos fiquei pensando naquela conversa e em qual seria a responsabilidade de homens negros, que têm frequentemente se inclinado para relações afetivas com mulheres brancas, na subordinação de algumas mulheres negras à estética branca do cabelo liso. Estão esses homens em lugar de defenderem que mulheres negras mantenham uma estética de valorização da identidade negra? Usar cabelos alisados realmente implica em abdicar a um pertencimento ou em ausência de consciência racial?

Nesse emaranhado de dúvidas e questões fiquei me perguntando se não seria dar mita importância para os homens, pensar que as mulheres heterossexuais pensam a sua aparência também em consideração a eles. Cheguei à conclusão que não. Afinal os encontros e os afetos continuam sendo uma importante dimensão da vida, eles têm os seus rituais e as comédias românticas e as novelas globais têm um modo muito singular de nos convencer disso.

De toda forma, estou certa que as mulheres negras têm sido muito mais cobradas como guardiãs da autenticidade negra, principalmente, em consideração à forma como usam os cabelos, haja vista que os homens negros, sempre têm a possibilidade de rasparem seus cabelos e não se preocuparem com isso. Se o cabelo é um importante aspecto da estética e da identidade negra, me parece que essa cobrança, como tantas outras, tem recaído com mais intensidade sobre os corpos femininos.

A questão da afetividade entre homens negros e mulheres brancas e negras. Na mesma mesa quando o tema veio à baila era visível o desconforto das pessoas em relacionamentos inter-raciais. Qual a raiz do desconforto? Esse é um tema tabu, causa sempre alguns constrangimentos seja para a mulher negra que é apontada como a solitária e desprezada, seja para a mulher branca, vista como responsável pela solidão de uma outra mulher. Mas também para os homens negros, principalmente o militante, ativista, intelectual engajado, que apesar de tanta consciência, inclina o seu desejo e o seu afeto para o grupo racial dominante, rompendo o pacto de solidariedade com o seu grupo, que o seu ativismo e a sua militância parecem sugerir. Mulheres e homens negros sem engajamento sucumbiria mais facilmente à ideologia de maior valor do grupo branco, amplamente difundida por todas as mídias e instituições escolares, e escondida atrás do mito da democracia racial.

Naquela mesa alegou-se que o encontro do homem negro com a mulher branca ou o contrário, embora menos frequente, deveria ser explicado por uma energia (eufemismo para desejo sexual). O amor também foi chamado. Talvez seja sempre bom dizer que quando se fala nesse tema, não se está acusando indivíduos em particular, mas se está jogando luz a um padrão recorrente na sociedade brasileira. Uma sociedade multirracial, na qual homens negros, principalmente homens negros em processo de ascensão, têm escolhido (ou sido escolhidos!) mulheres brancas como suas companheiras. Do pondo de vista social, o tema só interessa por ser um padrão e por organizar as relações e ser um importante elemento nas possibilidades de encontros afetivos e por seus impactos políticos na forma como homens e mulheres negras se pensam. Seria bastante interessante se conseguíssemos falar dele, assim como falamos de desigualdade de classe, sem que tenhamos sempre a sensação de que se trata de mulheres negras desprezadas, falando sobre os seus insucessos afetivos. Estamos falando de um fato social que revela muito do que é a sociedade brasileira, e dos lugares de poder ocupados em consideração ao gênero e à raça e seria bom que homens negros e mulheres negras pudessem falar sobre isso, sobretudo, os envolvidos com um projeto de igualdade racial.

Podemos aceitar com alguma facilidade que os relacionamentos afetivos entre homens e mulheres, mulheres e mulheres e homens e homens são mediados por condicionantes materiais, nível de escolarização, renda, status profissional, padrões estéticos. Ora, então podemos também aceitar que ser branco, em sociedades multirraciais, implica não somente em vantagens materiais, mas também em vantagens simbólicas no que toca ao afeto e à orientação do desejo, sendo um trunfo no mercado afetivo. A pergunta que talvez tenhamos que responder é como essa vantagem atua nos imaginários de mulheres e homens negros e impactam em suas relações afetivas e sexuais. Pois, dificilmente uma relação afetiva pode ser explicada tão somente por energia (desejo) ou pelo amor, como se ambos fossem livres de condicionantes sociais, como o gênero, a raça e a classe.


1 Claudete Gomes Soares é professora universitária e interessada no tema das relações raciais no Brasil contemporâneo.

** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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