Sueli Carneiro, nossa bandeira

Sueli Carneiro fez 70 anos. Nasceu num 24 de junho, dia de São João, data festiva Brasil afora. E o país precisa conhecer e celebrar a existência dessa filósofa, escritora, ativista, referência maiúscula do movimento de mulheres negras. Desenganada aos 2 anos de idade pela desnutrição severa decorrente do Mal de Simioto (doença de crianças pequenas alérgicas ou incapazes de digerir o leite de vaca), Aparecida Sueli Carneiro Jacoel completa sete décadas de vida em intensa atividade, reconhecida e reverenciada por seus pares. É um marco numa sociedade atravessada pela existência abreviada de pensadoras negras, como Beatriz Nascimento, morta aos 52 anos, Lélia Gonzalez (59), Carolina Maria de Jesus (62) e Luiza Bairros (63).

Nas palavras precisas de Bianca Santana, jornalista e biógrafa da pensadora, Sueli Carneiro é a mulher que enegreceu o feminismo brasileiro. Não é exagero. Em abril de 1988, ela fundou a Geledés – Instituto da Mulher Negra, organização da sociedade civil pioneira em denunciar e combater, com protagonismo feminino, o racismo, o machismo e a desigualdade nacionais. Fez isso, antes de os negros marcharem contra a abolição incompleta naquele maio do centenário da Lei Áurea; de a Constituição Cidadã ser promulgada, em outubro; de o primeiro presidente eleito diretamente após duas décadas de ditadura militar ser escolhido e empossado.

Sueli Carneiro, mãe de Luanda, corintiana apaixonada, fã de futebol, é autora de centenas de ensaios, textos acadêmicos, artigos de jornais e discursos, porque ela não fala de improviso. Elenca cuidadosamente dados, argumentos, raciocínios para cada apresentação oral. Dia desses, assim definiu-se: “Escrevo para falar”. O primeiro livro foi publicado em 1985, em coautoria com Thereza Santos e Albertina de Oliveira Costa. “Mulher negra: política governamental e a mulher” analisou de modo inédito, segundo a biógrafa Bianca, gênero, classe e raça — variáveis do feminismo interseccional que ganhou musculatura no Brasil do século XXI pela obra de intelectuais negras como Djamila Ribeiro, Carla Akotirene, Joice Berth, Juliana Borges, Giovana Xavier e Winnie Bueno, para ficar em meia dúzia de exemplos.

Em 2018, a filósofa Djamila, coordenadora da coleção Feminismos Plurais, lançou o selo editorial Sueli Carneiro. A estreia foi com “Escritos de uma vida”, seleção de 20 textos da homenageada, doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP). O livro dá a medida da importância de Sueli para o movimento negro e o feminismo brasileiro. Filha de Ogum, escreveu sobre o poder feminino no culto aos orixás; a histórica III Conferência Mundial contra o Racismo, em Durban (África do Sul), que abriu caminho para as ações afirmativas no Brasil; a constitucionalidade das cotas raciais, que defendeu em audiência pública no Supremo Tribunal Federal.

Sueli Carneiro participou da luta contra a ditadura; hoje engrossa as fileiras em defesa do estado democrático de direito com a Geledés e a Coalizão Negra por Direitos, formada por mais de uma centena de organizações do movimento negro brasileiro. Sábado passado, o historiador Luiz Antonio Simas, emocionado com a interpretação de Gilberto Gil em show virtual com a cantora Iza, escreveu sobre “Tempo Rei”, a canção:

“Para os bakongos, Kitembo (ou Ndembu, ou Tempo, como é mais conhecido no Brasil) é o Senhor do Tempo em todas as suas dimensões… Seu símbolo maior, a bandeira branca, é referente aos tempos primordiais em que os bakongos eram nômades e tem um sentido belíssimo. Diz um mito famoso que, quando queriam mudar de lugar, os povos deveriam louvar Ndembu e erguer a ele uma bandeira branca. Quando o vento soprasse na bandeira, a direção que o grupo deveria tomar estava estabelecida. Outra versão fala da bandeira branca como um símbolo dos caçadores, que a erguiam durante as caçadas para que o grupo não se perdesse na jornada. A bandeira fincada também significa que a casa foi encontrada e a ela todos os de bom coração são bem-vindos”.

Com escritos e presença, Sueli Carneiro é bandeira que orienta a caminhada, indica o alvo, demarca o território das mulheres e da juventude negras. É com ela que se aconselham e lutam; nela se inspiram e fortalecem; dela se alimentam e se orgulham. A ela, gratidão. E vida longa.

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