Silêncio, por Sueli Carneiro

O ciclo de conferências “O silêncio dos Intelectuais”, que está ocorrendo em algumas capitais do país, não poderia realizar-se em momento mais oportuno, trazendo luzes para a compreensão de contradições da atividade intelectual, em especial na esfera pública.

Intelectuais de partidos, formadores de consciência ou ideólogos oferecem a justificativa teórica e conceitual para os não ditos intelectuais, a ausência de crítica ou deslocamentos de foco sobre a natureza da crise política. A filosofia contribui no debate para nos esclarecer por meio de Marilena Chauí que o PT “caiu em uma armadilha tucana de que os petistas não se deram conta”. A conclusão é que os petistas são ingênuos, presas fáceis das armadilhas preparadas pelos outros.

A infantilização de agentes políticos opera nesse caso como absolvição para suposto desvio cometido. A filósofa vai além em sua reflexão e nos ensina acerca do sentido do silêncio dos intelectuais em conjunturas conturbadas. Segundo ela, “muitas vezes o verdadeiro engajamento exige que fiquemos em silêncio, que não cedamos às exigências cegas da sociedade.” Há, portanto, segundo esse raciocínio, um momento de cegueira social diante da qual a clarividência intelectual deve se calar. Faltou a explicação sobre o que seriam as exigências cegas da sociedade diante da crise política, que seriam incompatíveis com o engajamento a ponto de impor o silêncio. Ademais, se a clarividência dos intelectuais não pode nos retirar da cegueira social e depende de condições especiais para poder se manifestar, para que servem os intelectuais?

O silêncio parece se apresentar como tática de preservação do compromisso. Revela que a crítica que não pode ser cabalmente realizada sem o rompimento com as cumplicidades oriundas do pertencimento a uma perspectiva política na qual se investiu parcela significativa de vida e reflexão. Para Chauí, ainda, entre as explicações para o retraimento do intelectual na esfera pública, estaria uma ordem vigente legitimada que retrai o pensamento crítico e a percepção de alternativas. No entanto, a legitimação da ordem vigente não está dissociada do fracasso das concepções alternativas que se dispuseram a confrontá-la e, sem questioná-las, torna-se impossível resgatá-las. Aí reside a principal das aporias do intelectual engajado, notadamente à esquerda, diante dessa aflição. Longe de se recolher ao silêncio, deveria, tal como afirmou Milton Santos, a propósito do papel do intelectual, em uma de suas entrevistas, “exercer diariamente rebeldias contra conceitos assentados, tornados respeitáveis, mas falsos (…) aceitar o papel de criador e de propagador do desassossego; o produtor do escândalo, se necessário. É evidente que é preciso para esse desideratum ter boa medida entre a modéstia e a coragem. Modéstia e coragem são as condições do homem só, do eu sozinho, porque um intelectual não é um nós; o intelectual não espera o apoio do colega ou do vizinho para avançar e, freqüentemente, não avança se a cada passo tem que pedir o apoio do colega ou do vizinho.” Para que o intelectual engajado pudesse realizar tal desordem nas ordens vigentes, o seu engajamento fundamental deveria ser com a busca incessante da verdade, a crítica permanente, a revisão de paradigmas e a recusa a condescendências.

No entanto, o silêncio auto-imposto por alguns intelectuais engajados produz, como aponta Marcelo Coelho no artigo “Os intelectuais em tempos de CPI”, um paradoxo nessa inusitada conjuntura. Segundo ele, “observando o comportamento de uma camada intelectual voltada à defesa de partidos, tanto do PSDB quanto do PT, parece ter restado aos jornalistas à apuração da verdade. Com todos os erros e precipitações, procurou-se investigar ao máximo o poder, algo que os intelectuais não foram capazes de fazer.” Ou seja, os pensadores engajados renunciaram taticamente a pensar criticamente o real, desvelar a natureza das relações que explicariam a crise política, buscar as razões que perverteram os fundamentos éticos e políticos que justificaram as práticas que hoje assombram o país, não por qualquer ineditismo que elas contenham, mas pelos agentes políticos que hoje as protagonizam. Foi longa e árdua a construção da exigência da ética na política como um valor inegociável, determinante para as escolhas eleitorais da maioria dos brasileiros antes condicionados ao “rouba mas faz”.

Nessa tarefa, denúncia, conscientização e teoria colaboraram para a estruturação de novo paradigma de exigência cidadã para o exercício da prática democrática e republicana. Um patrimônio político que está sendo dilapidado pela incapacidade dos agentes políticos de defendê-lo com radicalidade, expurgando os que os conspurcaram e pelo silencio cúmplice de intelectuais engajados. O saudoso Milton Santos, que nunca renunciou à liberdade e autonomia como condição essencial para o exercício da atividade intelectual transformadora, afirmava: “Eu tinha a certeza de que um dia os intelectuais iam ter voz no Brasil. E hoje estou orgulhoso e feliz de poder participar do debate político, sem nenhuma vinculação a partidos, ainda que não esconda as minhas simpatias”. O país está carente de sua lucidez, pois, no exercício pleno da atividade intelectual, recusou-se a, como aponta Marcelo Coelho, adotar “um silêncio estratégico, orientado pelo cálculo ou pela submissão política”. Vale para os intelectuais e para todos nós.

+ sobre o tema

A Invenção de Zumbi – por Sueli Carneiro

Bendito vidro moído nos bofes do Senhor bendita a...

Eu quero crer, por Sueli Carneiro

Em matéria da Folha de São Paulo de 23/10...

Mandela, Buscapé e Beira Mar, por Sueli Carneiro

As identidades de classe e de raça permitiram que...

Penta

Gosto de futebol e bem jogado. Acreditava como muitos...

para lembrar

Sueli Carneiro: Nonno Paolo – um caso emblemático

Há coisas essenciais sobre o racismo no episódio ocorrido...

Brasil, EUA e África do Sul, por Sueli Carneiro

Aconteceu de 29 de maio a 1º de junho...

A carta da Princesa, por Sueli Carneiro

Sueli Carneiro Fonte: Jornal Correio Braziliense - Coluna Opinião A...

Olimpíadas

Recusando-se a cumprir o script adotado pela mídia na...
spot_imgspot_img

A 25ª. Festa Literária da USP está imperdível; Geledés indica algumas obras

Se você adora ler e ainda não foi à 25 ª Festa do Livro da USP, que é um dos maiores eventos literários do...

Primeira fase da Unicamp aborda ChatGPT, ‘Guardiões da Galáxia’ e racismo com textos de Sueli Carneiro e Luther King

Inteligência artificial, racismo, reflexo da colonização nos indígenas, música brasileira sob o regime militar, testes em animais e uso de anabolizantes estiveram entre os...

“Há ameaça contínua à população afrodescendente decorrente de um projeto de extermínio”

Representantes de Geledés-Instituto da Mulher Negra participaram entre a segunda-feira, 25, e esta sexta-feira, 29 de setembro, de uma agenda intensa de monitoramento e...
-+=