“Todas as nôistes eu dava duas viagens. Eu ia de bonde, e voltava a pé com as tabuas na cabêça. Treis dias eu carreguei tabuas dando duas viagens. Dêitava as duas horas da manhã. Eu ficava tão cançada que não conseguia dórmir. Eu mesma fiz o meu barracaozinho. 1 metro e mêio por um metro e mêio. Aquêle tempo eu tinha tanto mêdo de sapo. Quando via um sapo gritava pedia socorro. Quando eu fiz o meu barracão era um Domingo. Tinha tantos homens e nenhum auxiliou-me sobrou uma tabua de quarenta centimetro de largura era em cima dessa tabua sem colchão que eu dórmia.”
Carolina Maria de Jesus. Onde estaes Felicidade?
“Brooklyn, o que será de ti? Regar a paz, eu vim
Jesus já foi assim, brigas traz intrigas, ai de mim
Se não tolin, zé povim quer meu fim
Se esperar, apodrece, se decompõe
Se a gente faz, corre atrás, pede a paz, eles esquecem
Sempre assim, crocodilo hoje só rasteja em solo fértil”
Por Maria Nilda de Carvalho Mota – Dinha & Eduardo Mota
Pergunta inicial: Quilombo ou Senzala Moderna?
Sabemos bem que a urbanidade tem sido fator de muitas mudanças sociais ao longo da história. O êxodo rural no Brasil, por exemplo, foi certamente um dos grandes responsáveis pelo fenômeno do surgimento das favelas – esses aglomerados de casas, pessoas e sonhos ora invisíveis, ora descritas na literatura como componentes de um cenário nacional fadado ao fracasso – dada sua composição étnica de grande ascendência negra.
As favelas, do ponto de vista cultural e linguístico, são uma enorme e constante fonte de renovação, por isso são tidas, por alguns, como verdadeiros quilombos renascidos com a missão de desmontar o esquema político, econômico e cultural que, apesar dos mais de cem anos de abolição da escravatura, nos tem mantido escravos e escravas, em determinados aspectos de nossas vidas.
Há ainda um outro ponto de vista sobre a favela que tende a focar as relações econômicas e que, sem se contrapor à visão revolucionária de “quilombo moderno”, insiste em pensar a favela também como “senzalas modernas”, já que as comunidades faveladas reúnem a grande massa trabalhadora que continua a ser o principal motor econômico do país.
Com efeito, essa enorme massa trabalhadora/consumidora faz os olhos da economia se voltarem para esse “mundo favelizado”, o qual, segundo Mike Davis em Planeta Favela, já se configura como mais da metade do globo urbano. Como resultado disso, há o surgimento e fortalecimento de diversos movimentos advindos da periferia, sobretudo os de cunho cultural, como escolas de samba, os times de várzea, o Hip Hop e os saraus.
Entre Canindé e Canão, neguinho e neguinha zika
Mas, antes mesmo de entrar na “moda”, se pode dizer que a favela teve seus representantes ilustres: figuras de impressionante talento e que serviram de inspiração para as novas gerações, como Carolina Maria de Jesus, a escritora, e Mauro Mateus dos Santos, Sabotage, o maestro da Canão. Podemos dizer que, entre ambos, há muito mais do que o óbvio (suas peles negras, sua classe social, sua vivência na favela e o destaque que ambos alcançaram no mundo das artes). Podemos enumerar uma série de outras semelhanças, como as fortes personalidades, a alta resiliência e a forma como ambos escreviam: uma escrita fraturada e urgente.
A palavra zika, antes de referir-se a um dos vírus transmitidos pelo mosquito aedes aegypti, significava, na gíria das favelas paulistanas do final da década de 1990, azar, coisa ruim a ser evitada. Atualmente, o termo engloba este e, curiosamente, um outro significado oposto ao seu original: zika, na gíria das novas gerações é algo extremamente bom, melhor do que tudo, equivalendo aos termos “top” (super) e “chave”, “muito louco” ou “cabuloso”. Sendo assim, ser neguinho, neguinha zika, é ao mesmo tempo incomodar e despertar admiração – sentimentos que Carolina e Sabotage despertaram e ainda despertam.
No caso de Sabotage, “neguinho zika”, nas duas acepções que esta expressão atualmente engloba, talentoso rapper apelidado de “maestro do Canão”, ele parece levar para a ponta da caneta o free style, o canto improvisado mas extremamente denso. Seu rap vem preenchido de favela, de luta por sobrevivência, fraternidade, ira e uma cadência rítmica que nos embala e nos leva para dentro de seu “bom lugar”. Carolina, por sua vez era também o que hoje se pode chamar de “neguinha zika”: ciente e orgulhosa de sua negritude, disposta à luta, à briga e a ajudar a quem lhe pedisse apoio. Ambos foram personagens altamente inspiradoras para o que hoje é o Movimento Hip Hop e a Literatura Negro-Periférica.
Nascida em Sacramento (MG), Carolina, a nossa “neguinha zika”, completaria 103 anos em março, se estivesse viva. Aos 33 iniciou sua via sacra caminhando durante dois meses, de Sacramento a São Paulo, cidade onde viveria e trabalharia até sua morte, em 1977. Autora do best seller Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, Diário de Bitita e Onde estaes Felicidade?, dentre outros livros, Carolina deixou registrado o seu cotidiano na extinta Favela do Canindé, o trabalho de catadora de papel, a fome, as dificuldades em ser mulher negra e mãe solteira numa cidade opressora, parideira de misérias. Enquanto lutava pra sobreviver e sustentar a família, Carolina escrevia pra viver, pra manter a sanidade mental e a integridade da alma numa cidade que se “modernisava” e onde sequer restavam porões para as pessoas pobres morarem, tal qual a autora narra no seu último livro Onde estaes Felicidade? (Edições Me Parió Revolução, 2014).
Sabotage era o nome artístico de Mauro Mateus dos Santos. Paulistano, nascido em 13 de abril de 1973, na Favela do Canão – eternizada em suas canções – o rapper, antes de se firmar enquanto artista, trabalhou como comerciante varejista de drogas e tinha uma aparência, por assim dizer, “pouco valorizada”: preto de último tom e sem os dentes da frente, extremamente magro e com dreads espetados na cabeça, como se quisessem alçar vôo, fazer jus à personalidade que os carregava. Sabotage era o neguinho zika, mas seu talento, como o de Carolina, enchia os olhos e encheu os bolsos de muita gente com tino empresarial. Ele cantou com muitas parcerias diferentes, participou de inúmeros programas de TV e atuou em três filmes: O Invasor, Carandiru e um documentário sobre sua vida. Foi assassinado em 24 de janeiro de 2003, a caminho do Fórum Social Mundial. Um dia antes, havia gravado a música Canão, onde parece se despedir de nós, do Canão e do Zé Porvim que quis seu fim. Mas o maestro do Canão não morre. A poeta do Canindé também não. Suas obras e condutas não permitem o esquecimento. Quilombo ou Senzala moderna, do ponto de vista histórico, as favelas ainda são recentes, mas já reúnem fatos e personalidades capazes de mudar os rumos do país.
Carolina e Sabotage nos inspiram.