Um livro para interpretar o Brasil

“Quarto de despejo”, de Carolina Maria de Jesus, é imprescindível para entender a situação das pessoas negras e pobres no Brasil

Em 2022, um conjunto de instituições e grupos de pesquisa, entre eles o Projeto República, da Universidade Federal de Minas Gerais, e um dos maiores jornais do país, a Folha de S. Paulo, solicitaram a 169 intelectuais brasileiros que indicassem três livros importantes para compreender o Brasil no período de 200 anos de proclamação da Independência.

A obra Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus, recebeu o maior número de indicações. O que isso significa?

Em primeiro lugar, temos sinais de uma temporalidade em que a opinião e a produção intelectual de mulheres negras passam a ter algum valor, em que está se criando um novo imaginário no qual as contribuições interpretativas das mulheres negras para decodificar o mundo são ouvidas.

Neste caso em especial, quais são os aportes de Quarto de despejo? Estamos falando de um cenário no qual mulheres negras, a partir de muita luta, criaram um lugar de existência para si. Por isso, antes de falarmos sobre o livro, é fundamental compreendermos o papel e a atuação da autora.

Carolina Maria de Jesus nasceu na zona rural de Sacramento, Minas Gerais, em 1914. Migrou com a mãe rumo ao interior de São Paulo, fugindo da fome, da exploração escravocrata e buscando trabalho. Nas cidades de Lajeado, Conquista e Franca, mãe e filha trabalharam na lavoura e em serviços domésticos. Depois da morte da mãe, em 1937, Carolina se mudou para a cidade de São Paulo, indo morar na favela do Canindé. Lá, teve três filhos de pais diferentes, com os quais nunca quis se casar. Por seus escritos e suas entrevistas, depreendemos que não queria ter um homem a quem servir em casa, a quem fosse subordinada; queria manter-se independente.

A despeito de contar com apenas dois anos de escolaridade, Carolina determinou-se a escrever livros, a contar suas histórias em crônicas, contos, romances, músicas, poemas e também num diário. Não o fez só como forma de desabafar, mas de efetivar um projeto literário audacioso de uma pessoa criativa e desejosa de realizar sonhos que a inscrevessem como pessoa no mundo.

No final dos anos 1950, um jornalista fazia pesquisas e entrevistas para uma matéria de jornal e ouviu falar de Carolina, uma mulher folclorizada na favela onde vivia. Encontrou-a intimidando os vizinhos, que tomavam o lugar das crianças ao utilizar brinquedos num parque público. Carolina os ameaçava de registrar o nome deles em “seu livro”. Dantas teve acesso aos cadernos engordurados da autora, encontrados no lixo do qual vinha a sua subsistência e a dos filhos, pois dali ela recolhia materiais para vender. Os diários tinham imenso potencial midiático para explorar, ele deve ter concluído.

A escritora brasileira Carolina Maria de Jesus durante noite de autógrafos do lançamento de seu livro “Quarto de Despejo”, em uma livraria na rua Marconi, em São Paulo (SP). (São Paulo (SP), 09.09.1960. (Foto: Acervo UH/Folhapress)

A despeito de Carolina ter elaborado muitos projetos de livros e de tê-los mostrado a Audálio Dantas, o que interessou ao jornalista foram os diários com textos incisivos e explosivos que documentavam e escancaravam a miséria em que ela e seu povo viviam. Essa matéria bruta poderia resultar na venda de jornais e revistas, além de coadunar com o momento histórico (início dos anos 1960, pré-golpe militar de 1964) em que os pobres, os movimentos sociais e as reflexões sociológicas que queriam modificar o Brasil estavam tão em voga.

Quarto de despejo foi um fenômeno editorial no início dos anos 1960. Alcançou milhares de cópias vendidas, foi traduzido em mais de 14 países e é considerado por vários pesquisadores como o texto brasileiro mais publicado em todos os tempos. O fascínio dessa recepção fantástica passa pelo exotismo que o mercado literário aplicou a Carolina, muito mais do que por uma suposta empatia. Trataram de despertar extrema curiosidade pelos meandros do sofrimento, da precariedade, da miséria e da superação. Não podemos esquecer que, quando uma pessoa subalternizada vence a opressão, produz-se certo entusiasmo no coração da média dos opressores que gostam de se distinguir dos algozes mais terríveis. Nessa jornada heroica, a comiseração constitui-se como recurso de “humanização” do opressor.

A despeito de toda essa visibilidade, o descaso por essa mulher negra escritora permite que constantemente troquem o nome de Carolina Maria de Jesus. Jornalistas, acadêmicos, políticos e estudantes não têm pudor em chamá-la de “Maria Carolina de Jesus”. Essa confusão nos informa muito sobre o desprezo destinado aos artistas e intelectuais negros, mesmo os muito famosos.

Outras autoras negras, tais como Conceição Evaristo, Miriam Alves e Esmeralda Ribeiro, foram responsáveis por manter a chama de Carolina Maria de Jesus viva durante o longo período de apagamento que se estendeu dos anos 1980 a 2000. Também seguraram o fole as pesquisadoras Elzira Divina Perpétua, Fernanda Miranda, Gabriela Leandro, Raquel Alves dos Santos, Raffaella Fernandes e o pesquisador Mário Augusto Medeiros. Todo mundo trabalhando duro não só para que Carolina não fosse estigmatizada como a autora favelada manipulada por um jornalista, mas para que fosse reconhecida como escritora importante e intérprete da situação das pessoas negras e pobres no Brasil dos anos 1950 e 1960 por meio de seu projeto literário, notadamente do livro Quarto de despejo, sua obra mais conhecida.

O racismo atravessa e define a ascensão e a derrocada de Carolina Maria de Jesus no sistema literário brasileiro, aspecto insuficientemente analisado pela maioria dos pesquisadores brancos dedicados à sua obra, dos mais conhecidos e robustos, responsáveis por trabalhos mais alentados, àqueles restritos a artigos sobre aspectos de sua produção e trajetória.

A obra de Carolina Maria de Jesus, uma escritora negra que lutou a vida inteira para construir um lugar de existência para si mesma, nos convoca a construir outros imaginários que possam apreender suas paisagens literárias. Uma autora singular, complexa e paradoxal que não obedeceu à norma culta para escrever e grafou camadas superpostas nas páginas sujas de cadernos encontrados no lixo; que escreveu um texto errático, forjado no processo alquímico de diálogo entre dois anos de escolaridade formal, inventividade e determinação sem limites.

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