“Eu aprendi o português, a língua do opressor / Pra te provar que meu penar também é sua dor.” Com versos tão cortantes quanto o garimpo ilegal, o Salgueiro, com o samba-enredo “Hutukara”, derramou na avenida a história do povo yanomami. Davi Kopenawa, liderança yanomami e escritor do brilhante “A Queda do Céu”, que inspira o enredo, desfilou.
Não foram os únicos a colocar no centro narrativas africanas e indígenas. Mitos tupinambás levaram a Grande Rio a desfilar a obra “Meu Destino é Ser Onça”, de Alberto Mussa. Viradouro, a ganhadora, desfilou o enredo “Arroboboi, Dangbé”, trazendo à avenida a tradição religiosa da costa ocidental do continente africano.
De protesto e de literatura igualmente se vestiu na Sapucaí a Portela. O samba-enredo “Um Defeito de Cor”, nome da obra magistral de Ana Maria Gonçalves, colocou na passarela do samba a centralidade ancestral da mulher preta. “Tal a história de Mahin / Liberdade se rebela / Nasci quilombo e cresci favela”, canta o enredo, tecendo elos entre as revoltas escravas, o quilombo como território de resistência e a favela.
Foi acertada a inclusão na Portela de mulheres vítimas da violência, entre elas Marinete Silva, mãe de Marielle Franco, e Jackeline Oliveira, mãe de Kathlen Romeu. São as mulheres pretas e periféricas como elas que carregam nas costas o movimento contra o extermínio, são elas o norte dos movimentos negros. “Me embala, ô Mãe, no colo da saudade / Pra fazer da identidade nosso livro aberto”, enuncia poeticamente o enredo.
Não é a literatura que dignifica o samba; pensá-lo é elitismo. Ambos são mutuamente oriundos da melhor matéria-prima da poesia: as ruas. Kopenawa sente o cheiro do antigo céu, que desabou, no chão da floresta. Gonçalves e Mussa observam, com registros históricos, a vida a partir dos olhos das ruas. Samba emana da avenida e dela transborda; a literatura, inclusive a dos enredos, é o cimento que solidifica o mar de poesia para tudo não acabar na quarta-feira.