Uma cena cheia de identidade

Em seu mais recente livro, Larissa Ibúmi Moreira mapeia uma efervescente cena musical brasileira que desafia as fronteiras da identidade de gênero

Por Thiago Prata Do O Tempo

Foto: Agnelo Bento/Divulgação

Larissa Ibúmi Moreira

escritora e historiadora

Mineira de Resende Costa, Larissa Ibúmi Moreira, 25, é escritora e historiadora. Em seu mais recente livro, intitulado “Vozes Transcendentes: Os Novos Gêneros na Música Brasileira”, ela mapeia, por meio de relatos de artistas como Linn da Quebrada, Liniker e Johnny Hooker, uma efervescente cena musical brasileira que desafia as fronteiras da identidade de gênero.

Primeiramente, nos fale dos objetivos e dos desafios para a confecção do livro “Vozes Transcendentes: Os Novos Gêneros na Música Brasileira”. Eu observava a potência desse movimento musical que conta com vários artistas trans e percebia que havia um fio condutor dessa galera. Quando a Hoo Editora me convidou para fazer um livro a respeito dessa cena, inicialmente tive um certo receio, porque o livro seria de uma mulher cis falando de um universo de pessoas trans e travestis. Então, primeiramente, precisei criar uma relação de confiança e de amizade com os artistas, ver seus shows e os bastidores. Já no processo das entrevistas percebi que seria muito mais interessante transformar essas entrevistas, que são lindas biografias, em crônicas em primeira pessoa. Sou um vetor dessas vozes e apenas as conduzi. O lugar da fala não é meu. Fiz a transcrição, adaptei as entrevistas e encaixei letras de músicas dos artistas em meio aos relatos.

Por que o nome “Vozes Transcendentes”? Fiquei quebrando a cabeça durante os dois anos de produção do livro para ver qual nome daria a esse movimento. Algumas pessoas deram nome de ‘MPBicha’, ‘MPB Trans’, ‘movimento transviado’… Mas trata-se de um movimento muito diversificado e multicultural. E os artistas tinham receio de ver um movimento musical sendo colocado numa ‘caixa’, ou seja, sendo rotulado. Você tem artistas das mais diversas vertentes musicais, das mais diferentes estéticas,das mais diversas identidades de gênero. Por exemplo, tem a Tássia Reis, que é uma mulher heterossexual, mas que também está nesse grupo, mostrando o lugar da mulher dentro do rap. A ideia de “Vozes Transcendentes” foi por conta da pluralidade dos artistas. Além da música, eles estão fazendo também discursos e movimentos políticos. O que os une é essa voz de desconstrução, de pulverização de identidades de gênero, a potência em falar sobre identidades.

Você diz na apresentação do livro que usaria o termo “cena” como uma “metáfora de um espaço que comporta atores distintos, executando diversas funções e ações, mas que são unidos por um mesmo sentido, em um mesmo espaço-tempo”. O que isso quer dizer? Penso numa cena teatral mesmo. Existe um fio condutor, um mesmo contexto político, mas com atores muito diversos. A ideia de chamar esse movimento de cena é porque existe uma paisagem musical nova, mas diversa.

De que forma então você vê essa cena em um período de ataque protagonizado por políticos e alas mais conservadoras da sociedade ao mundo das artes? A arte sempre existiu e sempre foi um movimento de resistência diante do conservadorismo e movimentos fascistas. É o momento que a arte mais floresce. Não só com relação à reação ao golpe (referindo-se ao impeachment de Dilma Rousseff), mas também para falar de questões raciais, diversidade, feminismo, LGBT+. Imagino que essa cena venha nesse processo de resistência.

No livro, cada capítulo é uma minibiografia contada pelos próprios artistas. O quanto as histórias te surpreenderam e te emocionaram? Pessoalmente foi uma transformação para mim em entender como o corpo não está deslocado das qualidades do humano. Acho que retomou-se aquela característica performática da Tropicália e de Ney Matogrosso, a centralidade do corpo. A diferença é que a Tropicália era um movimento pensado, elaborado e esteticamente combinado, e este de agora é muito mais espontâneo. A Linn da Quebrada, por exemplo, está falando da liberdade do corpo. E isso é algo que surpreendeu bastante. A gente vê muito uma artista como diva. E, ali no palco, elas são divas. Mas ninguém sabe do caminho entre o palco e a casa delas, o percurso e a violência sofrida até o palco, algo que vai além do glamour.

O quanto essa cena se relaciona de alguma forma com outras vertentes culturais? Muito. Esse filme que tem a Linn da Quebrada, o “Bixa Travesty”, é um exemplo. Ela, inclusive, ajudou a roteirizá-lo. Muitos desses artistas são atores também. Eles fazem música que vai de encontro a várias manifestações.

Você citou a Linn da Quebrada. Você acredita que é o grande momento dela? Sim. Ela está na Europa. A Alemanha é nicho dessa cena queer. É fantástico vê-la levando essa realidade. Eu acho que outros artistas também estão num momento muito forte. Aliás, foi uma escolha minha em não pegar apenas artistas que estão no mainstream. Resolvi quebrar isso e mostrar que essa cena é muito mais diversa, vai muito além de Pabllo Vittar. Não que Pabllo não seja incrível, porque é. Mas essa cena está em todos os cantos.

Você não cogitou ter a Pabllo Vitar no livro? Cogitei sim. Ela foi convidada. Mas, por conta de problemas de agenda, não conseguimos encaixá-la no livro. Quem sabe na próxima?

Pensa em fazer uma parte II? Penso sim. A cada dia surgem mais personagens. Não consegui encaixar todos nesse trabalho.

Dentro dessa cena, daria para encaixar a Anitta? Pergunto por conta da questão do empoderamento. Eu não vejo assim. Acho ela mais próxima do movimento do sertanejo universitário, que também fala do lugar da mulher e faz um movimento muito importante. A Anitta também tem um papel importante, mas acho que não está em algum lugar dessa cena. Acho que está no entorno dessa cena. Volto ao exemplo da Tássia Reis, que é mulher e hetero e está dentro desse movimento desde o início. Ela tem uma voz de desconstrução, de discutir a mulher negra no Brasil e a mulher dentro do rap.

De que forma você analisa as eleições deste ano? Vejo de forma pessimista. Tem todo um conservadorismo e um monstro racista tentando alçar o topo do país. Se existe uma possibilidade de uma pessoa como Bolsonaro vencer uma eleição, significa que algo está muito errado. Algo deu muito errado quando houve a intervenção militar no Rio de Janeiro. Precisamos de olhos atentos nas ruas, nos movimentarmos e nos mobilizarmos.

Dentro desse contexto, qual papel terão os artistas que foram entrevistados para o seu livro? Quando lancei o livro fiquei um pouco com medo dos “bolsominions” (risos). Essa cena é muito importante tanto na representatividade quanto em outras questões. Hoje é possível ver travestis no palco dentro de cenário da música brasileira, sendo comparados a Caetano Veloso e Maria Bethânia. Quando isso seria possível anos atrás? Travesti era visto como chacota, com o papel de fazer as pessoas rirem. A gente vive numa sociedade de medo. É preciso combater esse medo.

Por fim, você prepara mais algum projeto? Esse processo do livro foi um desafio para mim, numa área a qual não faço parte. Mas minha escrita mesmo é literária. Estou produzindo um livro de romance, que sai no ano que vem, mas que não posso falar o nome ainda, até porque ele pode mudar. Me aventuro no mundo do jornalismo, mas minha área é outra.

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