Por: Fátima Oliveira
A falta de retaguarda de leitos hospitalares para quem não precisa permanecer em pronto-socorros e necessita de internação é o gargalo que explica em parte a superlotação de UPAs e pronto-socorros de Belo Horizonte.
Outros motivos são a insuficiência e a baixa resolutividade da rede básica, além do acesso dificultado a ambulatórios de especialidades. Nenhuma novidade. As autoridades sanitárias responsáveis sabem disso há muito tempo. Todavia, as medidas que deveriam ter sido tomadas não foram levadas a cabo à altura do problema.
A rotina em Belo Horizonte é a superlotação de urgências e emergências, que viram “casa de passagem” – local de “espera de vaga hospitalar”, que demora e muitas vezes não sai, o que transforma as chamadas observações em enfermarias!
Não é surpresa o fenômeno da superlotação resultar em impossibilidade de um pronto-socorro cumprir a sua missão 24 horas: atender urgências e emergências, até por uma questão de lei da física: dois corpos não podem ocupar ao mesmo tempo o mesmo lugar no espaço.
As UPAs viraram “postões”, desviadas da missão para a qual foram “inventadas”, – equipamento intermediário de atenção capaz de resolver pequenas e médias urgências. As UPAs atendem um número enorme de consultas, obrigação de postos e/ou ambulatórios. Não é só que as pessoas vão às UPAs porque não sabem a finalidade delas, mas é, sobretudo, porque a rede básica não dá conta da demanda.
É o olhar sobre o desvio de função e suas causas que permite entender a superlotação de urgências e emergências, situações que possuem responsável: o gestor municipal. Não há dúvida! Tanto faz ser em Belo Horizonte como em qualquer município que enfrente situação similar, embora nas capitais, incluindo a região metropolitana, tal “inferno de Dante” é em muito piorado.
Muitos municípios das regiões metropolitanas fazem de conta que não têm nenhuma obrigação sanitária para com seus cidadãos, apenas compram ambulâncias para desovar doentes na capital 24 horas, ininterruptamente. As exceções são raras.
A garantia do exercício do direito constitucional à saúde é dever, primeiramente, do governo do local onde o doente se encontra. Ou seja, do gestor municipal. É inaceitável que tal responsabilidade seja jogada nos ombros das instituições de saúde e dos profissionais que lá trabalham, atendendo doentes ou coordenando plantão.
A regra tem sido a inversão do óbvio, configurando que as prefeituras querem fazer cortesia às custas do chapéu alheio (médicos e serviços de saúde, que não os próprios), sem a contrapartida de condições de trabalho. Em ano eleitoral, a tendência é piorar, em todos os sentidos, inclusive com a adoção do abuso de poder como regra geral, a exemplo de um serviço que deve primar pela excelência em salvar vidas, como o Samu, sendo obrigado a adotar a prática de desova – deixar o doente em local sem vaga, isto é, leito mais suporte de recursos humanos e equipamentos necessários ao doente grave.
Como cidadã, exijo um Samu cada vez mais de excelência. Como médica, sei e cumpro o meu dever moral, ético e político de “me virar” para dar retaguarda real ao Samu; mas quedo-me ao concreto: as vidas não são virtuais. Compartilho da opinião de que negar vaga ao Samu (ter a vaga e mentir que não tem) não é só imoral, é criminoso, assim como “desovar” doentes não é missão do Samu nem pode passar a ser rotina, pois também não é apenas imoral, mas criminoso. Como deixar um doente que pode sobreviver num lugar onde ele pode morrer?
Fonte: O Tempo