Diz o ditado que Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje. É mais ou menos isso o que faz Cidinha da Silva com seu novo livro para a infância, “A Arara de Muitas Cores”.
Publicado agora pela Leiturinha, o título é o 21º lançamento da autora, mas vai soar familiar para alguns. Isso porque a história circula pelos palcos desde 2015 —só que com outro nome. “A Arara de Muitas Cores” foi escrita por Cidinha inicialmente como peça de teatro e foi encenada pela companhia Os Crespos como “Os Coloridos”, além de ter sido montada como monólogo pela atriz e diretora Lucelia Sergio.
Mas a narrativa é a mesma do livro, que tem ilustrações de Suzane Lopes. Nela, uma arara azul de bico empinado conversa com uma ave amarela da mesma espécie. De um lado, fica o sangue azul dos que se acham superiores e a empáfia de conquistadores, nobres, racionalistas e tecnólogos. De outro, está o amarelo do sol e os saberes ligados à terra e à tradição indígena.
O impasse e o choque entre as personagens prosseguem até que aparece uma terceira arara, de penas vermelhas e cheia de ginga. Viajante do mundo, ela conta histórias da África, lendas de Angola, fala da capoeira e apresenta coisas da Nigéria. É desse contato que nasce mais do que uma explicação de país.
Numa alegoria lúdica, Cidinha supera a ingênua ideia de que o Brasil foi forjado harmonicamente no contato entre esses três universos e mostra um pouco das entranhas dos jogos de poder, da violência política, da intolerância e do silenciamento. E, a partir disso, incentiva o leitor a ampliar o seu olhar para além da história oficial e dos saberes estabelecidos.
O escritor Edimilson de Almeida Pereira também faz um pouco isso em “Olho Vivo, Olho Mágico”, mas com outros recursos —ele usa a poesia e o próprio livro como objeto.
O vencedor do prêmio São Paulo de Literatura de 2021 com o romance “Front” apresenta dois poemas para a infância na edição, lançada pela FTD. Mas, antes de falar dos textos, é preciso explicar como o livro está impresso. Feito em formato sanfonado, a edição funciona como se fosse uma grande dobradura, guardada numa espécie de envelope que serve de capa.
De um lado, as páginas são abertas na horizontal e revelam o poema “A Mão, o Livro, o Papel e o Vento”, ilustrado por uma larga imagem cor de salmão feita por Rodrigo Visca. No texto, Pereira cria versos livres e sem rimas sobre o próprio ato de escrever, nos quais a mão, o papel, o livro e o vento falam sobre o processo de surgimento da literatura.
“‘Há um segredo/ que a mão gravou no livro./ Ainda que o papel se perca,/ o segredo/ não se apaga'”, diz uma das estrofes.
Ao olhar o sanfonado do outro lado, o leitor descobre outro poema: “A Senhora, o Gato, o Chapéu e o Pássaro”, que fala de forma poética sobre diferentes escolhas da mulher do título. Dessa vez, o sentido de leitura, dobra e desdobra das páginas é outro —elas se desenrolam na vertical e revelam uma ilustração única e comprida também feita por Visca.
Com isso, forma e conteúdo se unem, dão as mãos e não existem sem o outro. Juntos, criam um livro que desobedece as normas. E não teria como ser diferente, porque, afinal, poesia e literatura são o próprio terreno da desobediência. Silenciosamente, Pereira avisa os leitores de que doses de ruptura, rebeldia, confusão, imaginação e novas perspectivas não fazem mal a ninguém. Aliás, é o contrário. São muito necessárias, sobretudo nos dias de hoje.
A ARARA DE MUITAS CORES
- Preço R$ 49,90 (40 págs.)
- Autoria Cidinha da Silva e Suzane Lopes
- Editora Leiturinha
OLHO VIVO, OLHO MÁGICO
- Preço R$ 64 (20 págs.)
- Autoria Edimilson de Almeida Pereira e Rodrigo Visca
- Editora FTD