Violência doméstica ganha doloroso panorama no livro ‘Metendo a Colher’

Trabalho de desembargador toca ainda em questões como casamento infantil, limites da Lei Maria da Penha e 'femirracídio'

“Meter a colher é necessário”, diz logo ao que veio o livro “Metendo a Colher: Coletânea de Artigos e Outros Textos sobre Violência Contra a Mulher” da editora Gryphus, recém-publicado pelo escritor e desembargador Wagner Cinelli de Paula Freitas, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.

A obra é oportuna em diversos aspectos, mas especialmente ao pôr em evidência a situação de opressão e violência enfrentados pela mulher na sociedade brasileira, sem distinção de classe social, cor ou credo religioso. Neste caso, todas as mulheres estão sujeitas às mais diversas formas de ofensa, seja em termos profissionais, seja no acesso a bens materiais, ou, ainda, no acesso à Justiça —sobretudo quando se trata do amparo da lei, quando vítimas da violência doméstica, tema central tratado nessa obra.

Sob pontos diferentes, o livro marca algo relevante que, hoje, parece servir de consenso sobre qualquer pauta a respeito da questão do gênero feminino entre nós —”violência não é direito a ser exercido. É crime”, pontua Wagner Cinelli, que idealizou o livro a partir de uma série de reflexões que tem pautado sua atuação na magistratura fluminense.

O tema foi tratado, em parte, no projeto “Sobre Elas” —que inclui um documentário, um livro e artigos—, o qual obteve o terceiro lugar no prêmio Juíza Viviane do Amaral, em 2021 —que homenageia a magistrada assassinada brutalmente a facadas pelo ex-marido, o engenheiro Paulo José Arronenzi, na véspera do Natal de 2020, na frente das três filhas menores, na Barra da Tijuca.

Capa do livro ‘Metendo a Colher: Coletânea de Artigos e Outros Textos sobre Violência Contra a Mulher’, de Wagner Cinelli – Divulgação

No prefácio da obra, a doutora Renata Gil Alcantara Videira, presidente da Associação dos Magistrados Brasileiros, alerta que a impunidade faz sugerir que “o agressor não está sozinho”, mas sim, cumpliciado, pois sempre se vale “do silêncio daqueles que, defronte à barbárie, preferem fechar os olhos, como se o caso não lhes dissesse respeito”.

A juíza federal Adriana Cruz corrobora dizendo, na contracapa do livro, que “o ciclo de mortes e agressões de mulheres, só terá fim com o trabalho firme e constante de educação e prevenção”.

Para se ter uma ideia, a violência contra a mulher no Brasil é tão antiga que o romancista carioca Lima Barreto, na crônica “Não as Matem”, publicada em janeiro de 1915, no jornal Correio da Noite, alarmado com o alto índice de assassinatos naquela época, sobretudo nos subúrbios, já protestava, com enorme indignação.

Para o autor do clássico “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, referindo-se aos agressores, diz que todos “esses senhores parece que não sabem o que é a vontade dos outros”. Em outro tópico, destaca, ainda mais virulento: “nós já tínhamos os maridos que matavam as esposas adúlteras; agora temos os noivos que matam as ex-noivas”.

Os tópicos assinalados de Lima Barreto remetem a “Noivas Cadáveres”, um dos artigos constantes em “Metendo a Colher”, publicado primeiramente na imprensa, no qual Wagner Cinelli resume um quadro entristecedor. “Reunir e analisar dados estatísticos sobre a violência de gênero não é tarefa fácil, seja pela taxa de subnotificação, seja por outras questões metodológicas”.

Em seguida, relaciona o aumento de casos de agressões e feminicídio antes e durante a pandemia do novo coronavírus. Em tese, o livro só nos confirma que a “coisificação” da mulher é, de longe, um dos problemas mais graves que compõe a deterioração da sociedade do ponto de vista do machismo e do sexismo.

Ou seja, a situação é muito grave. Sem ter como “antecipar o futuro”, o autor sabe, que “ao longo deste ano, muitas outras mulheres serão vítimas de feminicídio praticado por atuais ex-companheiros”.

Wagner Cinelli, que tem larga experiência no Judiciário, também como advogado e juiz, em pouco mais de 40 artigos, traz no seu livro um doloroso panorama da história “de homens que matam” mulheres.

Tudo isso tem a ver, segundo ele, com a desigualdade de gêneros, a iniquidade de seu tratamento e, a priori, a precariedade com que são acolhidos os seguidos casos de violência, praticamente diários, deixando as mulheres de todas as idades cada vez mais frágeis e vulneráveis, sem o amparo de políticas públicas, ou à mercê da própria sorte, muitas vezes tendo que continuar convivendo sob o mesmo teto que seus algozes.

O livro abre ainda um leque grande para outras reflexões, igualmente cruciais: a exemplo de temas como o casamento infantil, o chamado “baby bride” —ou noiva bebê, em tradução—, a violência patrimonial e os limites de proteção da Lei Maria da Penha.

Fala ainda de outro assunto muito caro, conhecido pelo termo de “femirracídio”: o contexto em que se encontra a mulher negra no conjunto das ocorrências sobre o feminicídio no Brasil.

De acordo com “Metendo a Colher”, o 15º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, elaborado em 2020, informa que das 1.350 vítimas de feminicídios ocorridos no ano anterior, 61,8% têm como alvos mulheres negras.

A filósofa e ativista paulistana Sueli Carneiro (Foto: Bob Wolfenson)

Sueli Carneiro, ativista e socióloga, uma das maiores autoridades em estudos envolvendo o movimento feminista negro no país, esclarece que pesam sobre as mulheres negras duas gravíssimas opressões, que as aprisionam e deprimem —”a de gênero e a de raça”.

Por todos esses fatores, o livro do desembargador Wagner Cinelli se enquadra, pelo seu rico conteúdo, como um material indispensável para todos aqueles que visam realmente transformar esse país em uma verdadeira nação civilizada.

Em síntese, não é mais condizente, pleno século 21, que a imagem do homem esteja eternamente associada à guerra e às atrocidades contra as mulheres que, antes de qualquer outra coisa, representam o símbolo da maternidade daquela que lhes deu leite do peito e a vida.


Tom Farias*

Jornalista e escritor, é autor de ‘Carolina, uma Biografia’ e do romance ‘A Bolha’

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