A ABL não merece Conceição Evaristo

Em julho deste ano, Conceição Evaristo, 71 anos, cruzava de barco a Restinga da Marambaia, debaixo de sol, e se embrenhava na mata para ter um encontro com os quilombolas e caiçaras do isolado Quilombo da Marambaia. Pé na terra, abraçou, comeu, ouviu e falou. Viveu.

Por Dodô Azevedo no G1

Foto: Divulgação/Flip

Nossa literatura acadêmica é composta, basicamente, por brasileiros que não têm o costume de ir ao encontro do mundo. Nossa arte clássica é, em geral, produzida por artistas que nunca saíram da sombra, que pouco saíram de casa, e que baseiam sua vivência de mundo em uma vivência exclusivamente intelectual e elitizada. Não sujam as mãos, não colocam os pés na terra, não vão ao encontro do outro.

Por isso, a Academia Brasileira de Letras não merece Conceição Evaristo.

A ABL é uma instituição que, afinal, só é notícia quando há a morte de um membro e na eleição do substituto.

Uma espécie de involuntário cemitério de elefantes, onde se migra para esperar a visita definitiva da grande senhora. Mais um retiro do que um lugar vivo, que produz, pulsa, compartilha.

Afirmo na condição de autor de “Fé na Estrada” (Ed. Leya/Casa da Palavra), eleito recentemente por voto popular um dos 25 romances mais importantes do século XXI. Entre autores consagrados, quase todos homens brancos. Afirmo em consonância com meu amigo Luís Fernando Veríssimo que, ano após ano, recusa o convite para de candidatar a uma vaga na Academia.

A ABL não está em movimento.

Já Conceição Evaristo está. E, de certa forma, é.

A autora criou o incrível termo Escrevivência – “um jogo acadêmico com o vocabulário e com as ideias de escrever, viver e se ver.” – segundo a autora.

É essa a principal revolução que Conceição Evaristo levaria, se tivesse sido eleita hoje para uma cadeira da ABL que, blindada, casa fechada, não incorporaria.

Conceição Evaristo seria a primeira mulher negra a integrar a ABL. Não foi. Mas isso diz mais à respeito do Brasil, da Academia, e de nossa Cultura, do que sobre a autora.

O movimento não é uma novidade para o negro. O negro está em constante movimento. E, em um momento no qual acontece no Cine Odeon o Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul – Brasil, África e Caribe, reunindo centenas de cineastas negros, em que Gilberto Gil palestra sob Inovação e tecnologia, no Teatro Oi Casagrande lotado, as rodas de Slam ocupam praças nas periferias, e uma FLUP (Festa Literária das Periferias) se concentra na região do Cais do Valongo para promover seminários como a “Escrita Preta” e, em parceria com a TV Globo, prepara roteiristas negros de TV, evidencia-se isso.

Hoje, parece que todo o movimento que há na cidade é negro.

E Conceição Evaristo, toda ela movimento e escrevivência, um exemplo já no radar de meninas negras de periferia que desconfiam, com razão, de que sua origem de classe e cor de sua pele as impeçam definitivamente de seguirem a carreira de escritoras.

O movimento de Conceição Evaristo é tão vigoroso que é capaz de colocar em movimento tudo em volta.

Enquanto nossa ABL, distante da vida aqui fora, insiste em ser um jazigo do passado.

 

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Dodô Azevedo

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