Prisão de major da PM no Rio emociona mães que exigiam justiça por chacina desde 2003

A notícia da prisão do major Ronald Paulo Alves Pereira na operação “Os Intocáveis”, buscando desbaratar uma das maiores milícias na zona oeste do Rio, reverberou na casa de três famílias em outra parte da cidade com forte emoção e alívio.

Por Julia Dias Carneiro, da BBC

Elizabeth Medina Paulino com a foto dos filhos Rafael e Renan, ambos mortos na chacina (Foto: ARQUIVO PESSOAL)

“Tudo que eu pude fazer para colocar esse homem no banco dos réus, eu fiz, mas nunca consegui. Esse é um grande passo”, diz Elizabeth Medina Paulino, de 55 anos. “Até porque, como diz o nome da operação, ele era intocável.”

O PM foi preso por sua atuação na milícia de Rio das Pedras e região, na zona oeste do Rio. Mas para Elizabeth e outras duas famílias do bairro de Guadalupe, na zona norte do Rio, ele é um dos atores do crime bárbaro que matou seus filhos há mais de 15 anos: os rapazes Geraldo, Bruno, Rafael e Renan, com idades entre 13 a 21 anos. Os três últimos eram primos.

Em dezembro de 2003, os quatro jovens foram sequestrados, torturados e executados por um grupo de PMs na saída de uma casa noturna na Rodovia Presidente Dutra, em São João de Meriti, região metropolitana do Rio.

O caso ficou conhecido como a Chacina da Via Show. Nove policiais foram acusados de homicídio doloso. Mas Ronald, único oficial entre os réus, foi o único que conseguiu escapar do julgamento. À época capitão, Ronald seguiu com sua carreira na PM e conseguiu ser promovido a major.

Apenas três meses depois da chacina, recebeu uma moção de louvor do deputado Flávio Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) por serviços prestados ao Estado. Ronald era lotado no 22º Batalhão da Polícia Militar, no Complexo da Maré, e foi homenageado pelo parlamentar após uma operação que matou três bandidos na comunidade.

Elizabeth perdeu seus dois filhos na chacina, Rafael, 18, e Renan, 13. “Acabou-se a nossa vida, querida”, ela resume na entrevista com a BBC News Brasil.

Antes de receber a notícia da prisão, a semana começara marcada pela saudade. Na última segunda-feira, seu filho mais velho, Rafael, teria feito aniversário. Completaria 34 anos. No dia seguinte, soube que Ronald havia sido preso. “Fiquei estarrecida”, diz Elizabeth. “Justo no dia do aniversário do meu filho, estava se preparando essa operação. Agora pelo menos eu tenho certeza de que ele vai enfrentar a justiça”, diz.

‘Os Intocáveis’

Na terça-feira desta semana, o Ministério Público e a Polícia Civil do Rio deflagraram a operação “Os Intocáveis” para prender 13 lideranças de uma milícia que atuava nas comunidades de Rio das Pedras, Muzema e adjacências, na zona oeste do Rio, principal área de atuação dos grupos paramilitares na cidade. Cinco pessoas foram presas, Ronald entre eles. Oito outras estão foragidas.

Ronald é apontado como o número dois na hierarquia da quadrilha, atrás de Adriano Magalhães da Nóbrega, ex-capitão do Batalhão de Operações Especiais (Bope), que está foragido.

O major também é investigado como um dos chefes do chamado Escritório do Crime, suposto grupo de extermínio formado por policiais reformados ou na ativa – que pode ter envolvimento com a execução da vereadora Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes, há 10 meses. Tanto Ronald quanto Adriano já haviam sido ouvidos como testemunhas nas investigações da morte de Marielle.

De acordo com o MPRJ, entre as infrações rotineiras cometidas pelo grupo na região estão a agiotagem, a receptação de carga roubada, a extorsão de moradores, a cobrança de taxas em para prover serviços ilegais e a intimidação com uso da força.

Bruno tinha 20 anos quando foi morto na chacina (ARQUIVO PESSOAL)

Segundo a promotora Simone Sibilio, Coordenadora do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco/MPRJ), o major Ronald exercia liderança na organização criminosa, valendo-se de sua condição privilegiada de policial da ativa.

“Ele tinha forte influência e total envolvimento no ramo imobiliário ilegal praticado”, frisa a promotora, acrescentando haver “farta documentação” provando sua atividade na milícia.

Como é de praxe, Ronald entrou na Polícia Militar via concurso público nos anos 1990, mas foi barrado no exame psicológico. Segundo o laudo, demonstrou “irritabilidade e onipotência” que seriam incompatíveis com a atividade de policial. Em 1995, entretanto, conseguiu obter uma liminar para ingressar na PM. Ainda enfrentou um recurso da Procuradoria-Geral do Estado, mas a 16ª Câmara Cível manteve a decisão anterior, assegurando sua permanência na corporação.

“Ele já tem costas quentes desde lá atrás”, considera Elizabeth Medina.

Em nota enviada à BBC News Brasil, a Corregedoria da Secretaria de Estado de Polícia Militar do Rio afirma que o major Ronald “não descumpria” os quesitos para ingresso no Curso Superior de Polícia via concurso, tais como não haver sido condenado sentença em trânsito em julgado por crime comum.

Entretanto, afirma considerar “extremamente grave o envolvimento de um oficial da corporação em organização criminosa investigada pelo Gaeco/MPRJ”, e afirma ter se colocado à disposição para colaborar com a investigação, bem como ter solicitado cópia do mandado de prisão e dos detalhes dos autos para instaurar processo administrativo contra o policial.

‘Chacina da Via Show’

No dia 6 de dezembro de 2003, os quatro jovens moradores de Guadalupe foram juntos para um baile na Via Show, uma casa noturna no município de São João de Meriti. “Era o point na época”, lembra Siley Muniz Paulino, mãe de Bruno, que tinha 20 anos, e concunhada de Elizabeth.

“A gente achava que a casa era segura porque era cheia de policiais fazendo bico de segurança no estabelecimento. A gente só não sabia que esses policiais matavam”, diz Siley.

Ao saírem da festa, os rapazes foram agredidos por PMs que atuavam na segurança do local enquanto ainda estavam no estacionamento do local. Depois, foram levados para uma fazenda abandonada conhecida como Morambi, no município de Duque de Caxias, onde foram executados com tiros de fuzil. Ficaram desaparecidos por três dias, despertando forte comoção na cidade, e um protesto que fechou as quatro pistas da Avenida Brasil exigindo providências.

Siley Muniz Paulino e seu marido, Newton Paulino, que caiu na depressão após o assassinato do filho, Bruno, e adoeceu, morrendo sete anos depois (ARQUIVO PESSOAL)

“Se não fosse por isso acho que até hoje a gente não teria um corpo para enterrar. Mas a pressão fez com que a verdade viesse à tona, e os corpos apareceram. Estavam em um poço de desova, que tinha mais ossos além dos corpos deles”, conta Siley. “O laudo mostrou que eles apanharam tanto que estavam com ossos quebrados. Que já não tinham mais um dente inteiro na boca.”

Para Siley, a morte do filho causou também a morte do seu marido, Newton Paulino. Depois do crime, ele caiu na depressão e nunca mais se recuperou. Morreu sete anos depois, após uma sucessão de infartos. “Ele chorava todos os dias, ficava enfurnado dentro do quarto. Imagina ver um filho tão abençoado, tão querido, tão desejado, morrer assim.”

Impunidade

Quatro policiais foram condenados pela chacina. Ronald havia sido denunciado pelos homicídios, mas o processo contra ele foi suspenso pelo Tribunal de Justiça do Rio. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) determinou a reabertura do processo no ano passado, e a sessão em que o PM terá de se sentar no banco dos réus ficou marcado para o próximo dia 10 de abril. O processo corre na 4ª Vara Criminal de Duque de Caxias.

Elizabeth e Siley souberam da data marcada pela imprensa. Elizabeth costumava acompanhar o trâmite do caso diariamente, mas abandonara o hábito nos últimos anos, depois da suspensão do caso pelo TJ. Recita de cor o número do processo.

“Com certeza vamos estar lá. Eu, minha família, minhas amigas, as ONGs que nos apoiam, muita gente”, diz Elizabeth.

Advogado do major Ronald, Ubiratan Guedes afirma que seu cliente não teve “nada a ver” com a chacina e que o processo já havia sido anulado pelo Tribunal de Justiça por falta de provas. “Levaram o caso para Brasília, reabriram e agora ele vai a julgamento. Mas vai tranquilo. Vai mostrar sua inocência. Não há prova nenhuma contra ele”, diz o advogado.

Já sobre as denúncias feitas pelo MPRJ, Guedes diz que não vai, ainda, se pronunciar, por não ter tido acesso ao processo.

Siley diz que caiu nos prantos ao saber da prisão do major Ronald. “Foi um choro de alegria. Eu espero muito ver essa justiça antes de morrer”, diz.

Ela lembra o desespero que as famílias sentiram ao vê-lo lograr sucessivos adiamentos no julgamento e ainda ser promovido a major.

Ao saber dos crimes pelos quais foi denunciado na milícia, Siley lamenta que tenha ficado livre para atuar durante tanto tempo. “Esperamos ver esse homem sair da sociedade para que não pratique mais nenhum mal”, afirma.

 

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