Racismo atrapalha combate eficiente ao coronavírus, afirma médica

“Não falariam de economia se doença não matasse mais negros”, afirma Rosane de Souza, do Coletivo NegreX; para ela, dados raciais sobre pandemia ainda são insuficientes

Por Antonio Junião, Da Ponte 

Selfie de Rosane de Souza- mulher negra, de cabelo crespo, usando blusa de frito com estampa, preto, azul e branco e um cachecol marrom- em pé sorrindo
Rosane de Souza, médica especialista em controle de infecção e neonatologista (Foto: Arquivo pessoal)

A divulgação do primeiro Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde com recorte racial de casos registrados, internações e mortes pelo novo coronavírus no Brasil é um primeiro passo importante para a análise dos reais impactos da pandemia na população brasileira. Mas ainda está longe de ser suficiente. A precisão das informações sobre raça e cor das pessoas com Covid-19 esbarra em problemas estruturais do combate à pandemia como um todo no país, sobretudo o baixo índice de testagem e os processos pouco eficientes de notificações de casos de Síndromes Respiratórias Agudas Graves (SRAG), inclusive a Covid-19. E, no caso específico da população negra, o efetivo combate à pandemia também esbarra no racismo estrutural do país.

A avaliação é da médica Rosane de Souza, especialista em controle de infecção e neonatologista do Hospital Universitário Pedro Ernesto, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). A médica, que integra o coletivo NegreX, primeiro coletivo de médicas e médicos negros do país, formado em 2015, afirma que a divulgação de dados da Covid-19 com recorte racial é uma conquista dos movimentos negros.

“Tivemos uma vitória importantíssima, resultado do pedido do Grupo de Trabalho sobre saúde da população negra da Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade. Boletins epidemiológicos lançados a partir de 10 de abril incluem também informações sobre raça e cor. Fica mais fácil analisar como a Covid-19 impacta a população negra”, disse, em entrevista à Ponte.

No entanto, a médica afirmou que as informações do próprio Boletim Epidemiológico demonstram a subnotificação no quesito raça e cor. Um dos gráficos que compõem o documento mostra que, do total de 19.638 casos de Covid-19 confirmados no Brasil até 10 de abril, 1.942 não continham a informação de raça e cor.

gráfico do número de hospitalização por SRAG segundo raça/cor - 10/04/2020 até 14h
Reprodução: Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde, 10/04/2020

Dados atualizados no sábado (11/4) dão conta que números aumentaram, mas proporção de ausência de informações racializadas de morte e internações se mantiveram. Segundo documento, número de confirmados sem identificação de raça subiu para 2.206 para mais de 20 mil casos.

“São 10% dos casos confirmados sem registro de raça e cor”, aponta Rosane de Souza. “Os profissionais da saúde acham que esse dado não é importante. E digo mais: os que estão computados são, a maior parte, heteroidentificação. Ou seja, não foi o paciente que informou sua raça e cor, e sim a pessoa que preencheu o formulário com a sua própria impressão.” Em muitas unidades de saúde pelo país, lembrou a médica, preenchimentos de fichas de atendimento ainda são feitos à mão, o que leva à demora na transferência das informações para o sistema unificado da saúde, o e-SUS.

Quando falamos em mortes, o número de casos sem informações de raça é de 405 para um total de 1.124, até o dia 11 de abril.

Poucos testes

Segundo o site Worldmeter, que reúne dados da pandemia de Covid-19 pelo mundo, o Brasil tem um índice baixíssimo de testagem. São menos de 300 testes feitos por milhão de habitantes. Na América do Sul, o Chile realiza mais de 4 mil testes por milhão de habitantes, e a Venezuela, mais de 6 mil por milhão.

A falta de testes é um problema anterior ao novo coronavírus, como também mostra o Boletim Epidemiológico. No gráfico que apresenta as hospitalizações provocadas por SRAG segundo o agente causador, é possível notar o grande número de casos em que não se sabe o vírus que causou a doença. O índice de desconhecimento foi alto ao longo de todo o ano de 2019 e aumentou ainda mais em 2020, especialmente a partir da décima semana do ano, ou seja, meados de março.

Gráfico que mostra a hospitalização por SRAG segundo agente etiológico, até a SE 14- 10/04/2020 até 14h
Reprodução: Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde, 10/04/2020

A médica destaca a necessidade de um painel preciso de quais parcelas da população estão sendo testadas para uma noção exata da racialização da doença, de sua distribuição e letalidade por raça. “A impressão é de que a subnotificação ocorre preferencialmente na população negra, na população mais desassistida, que tem menos acesso aos serviços de saúde e menos informação sobre quais são os sinais de alarme”, disse a especialista. “Não temos dados, não sabemos onde estão as pessoas infectadas. É praticamente impossível construir estratégias e políticas sem saber para onde estamos indo.”

Em entrevista à Ponte, a especialista analisou também o discurso político sobre a pandemia da Covid-19 e a situação internacional de negras e negros frente à doença.

Ponte – Por que o recorte racial é relevante na atual pandemia?

Rosane de Souza – A pouca importância que alguns representantes do Estado brasileiro vêm dando à crise da Covid-19 mostra o pouco valor que têm as vidas negras e as vidas periféricas. Porque não é uma questão de desinformação: eles sabem quem tem maior risco de morrer. Quando uma figura pública propõe contaminação em massa para que grandes contingentes da população adquiram logo a imunidade, sabe que isso levará também a um adoecimento em massa e colapso do sistema público de saúde, com grande número de mortes. Em um país pobre e negro como o nosso, as mortes são pobres e negras. São corpos vistos como descartáveis, substituíveis. Não levantariam a bandeira de que a economia do país não pode parar se as mortes mais numerosas não fossem de corpos negros.

Ponte – Nos Estados Unidos a pandemia tem afetado mais os negros. Por que isso acontece?

Rosane – Em muitos aspectos a situação da maioria da população negra nos Estados Unidos na pandemia se assemelha à da população negra brasileira. Mas, como lá negras e negros são minoria, fica evidente a determinação racial na saúde, ou melhor, como barreira ao direito à saúde. Aqui, como somos a maioria da população, e a maioria da população é pobre, a questão econômica mascara a étnica. Em Chicago, por exemplo, em que 30% da população é negra, pouco mais de 70% das mortes por Covid-19 são de pessoas negras. O mesmo acontece no Estado da Louisiana, onde pessoas negras somam 32% da população, mas 70% das mortes por Covid-19. São várias razões, nenhuma delas biológica. Não tem nada na raça negra que aumente a presença, que atraia o vírus. Hipertensão arterial e diabetes são fatores de risco para formas mais graves da infecção, e são condições de alta prevalência entre pessoas negras nos Estados Unidos e no Brasil, mas não só por fatores físicos: são consequência também das dificuldades para uma alimentação balanceada, de jornadas extenuantes de trabalho. Quem pode ficar em quarentena? Qual a cor de garis, funcionários de supermercados, da segurança pública e dos transportes, entregadores, pessoal de limpeza e manutenção das redes de gás, luz e saneamento, entregadores? Entre os profissionais da saúde, qual a cor e a raça de técnicos de enfermagem, que compõem a parcela mais numerosa nesse serviço essencial, onde se trabalha sob enorme risco de contaminação e com dificuldade de acesso a equipamentos de proteção pessoal, isso no mundo todo? Se nós, médicos, estamos adoecendo, técnicos de enfermagem estão muito mais. A estimativa é de que existam 11 milhões de pessoas vivendo em favelas no Brasil. Nós, negras e negros, somos maioria entre esses 11 milhões. Nos Estados Unidos, embora não exista esse grau de “empilhamento” habitacional, negros também vivem em condições piores do que a população branca.

Foto do Coletivo NegreX, primeiro coletivo de médicas e médicos negros do país
Coletivo NegreX, primeiro coletivo de médicas e médicos negros do país | (Foto: arquivo pessoal)

Ponte – De modo geral, que influência as questões raciais têm na prática da medicina?

Rosane – Dados preliminares de alguns estados nos Estados Unidos mostraram que para as pessoas negras apresentando os mesmos sintomas que pessoas brancas a coleta de exame era oferecida menos vezes. Ou seja, ainda que tenha os sintomas, sendo negro você tem menos chance de ser testado contra o novo coronavírus, menos chance de proteger sua família e de conseguir um atestado para afastamento do trabalho. É o racismo estrutural agindo. Uma pessoa negra tem mais chance de suas queixas serem minimizadas, ou de se considerar que você é forte e “aguenta”. A medicina em geral não está pronta para falar sobre isso. A Academia Americana de Pediatria (AAP) recentemente publicou um estudo falando sobre aquilo que nós já sabemos na prática e a própria Organização Mundial de Saúde já disse: o racismo é um determinante de saúde. Tem impacto sobre a saúde física e mental das pessoas negras, inclusive das crianças. Mas é quando uma instituição como a AAP diz que as pessoas param para ouvir. Se não, fica como “mimimi”. A mudança que o perfil dos médicos e estudantes de medicina vem sofrendo nos últimos anos está fazendo com que esse tapa-olhos seja tirado à força. Tem muita gente dentro da saúde, na medicina e em outras áreas disposta a não deixar que se feche mais os olhos para isso.

Ponte – Recentemente, a Universidade Federal do Maranhão (UFMA) aprovou a disciplina de Saúde da População Negra, em caráter optativo. Como funciona esse tipo de disciplina? Há outras iniciativas semelhantes?

Rosane – Essa consciência de que há diferentes formas de adoecer e que raça, assim como gênero e sexualidade, interferem nas perspectivas de saúde não é nova. Em 2009, o Ministério da Saúde lançou a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, que estabelece diretrizes, conceitos e estratégias para promoção da saúde da população negra compreendendo suas especificidades e necessidades. A disciplina visa analisar essa política específica, mas também como a estrutura de saúde atinge ou não atinge a nossa população. Até onde sei, é a primeira vez que esse recorte vira disciplina na grade curricular, na UFMA. Geralmente, a discussão sobre saúde da população negra (SPN) é conduzida nos cursos de graduação no âmbito do ensino de medicina de família e comunidade, atenção integral à saúde ou psicologia médica. Como eu disse antes, são os estudantes e professores negras e negros pautando o tema e abrindo espaço de dentro para fora. E existem também ligas acadêmicas de saúde da população negra em algumas universidades. Ligas acadêmicas são espaços onde alunos se reúnem para pesquisar e discutir temas de seu interesse, sob supervisão de professores. Tem muita gente do NegreX fazendo isso, como a turma do Santa Marcelina, de São Paulo, que tem uma liga de SPN muito atuante. Ou as turmas da UFRJ e da UniRio, que conseguiram implementar as discussões sobre o tema em vários momentos da graduação. Cito apenas o que conheço melhor por proximidade geográfica, porque há movimentos assim em várias faculdades de medicina pelo país. A UFMA dá um passo enorme e abre um caminho para todos.

Ponte – O perfil típico do médico brasileiro ainda é muito branco e elitizado ou isso vem mudando? Como promover mudanças mais rápidas e efetivas nessa área?

Rosane – Ainda é, sim. Somos uma profissão branca e de classe média alta. Mas isso vem mudando e muito. Eu me formei em 1989. Minha turma tinha 3 negros, mas os outros 2 eram negros de pele clara. Éramos poucos em qualquer universidade em que estivéssemos. Não éramos uma ameaça a ninguém, não representávamos uma oposição às expectativas, aos conceitos absorvidos por nossos colegas e presentes nas instituições médicas sobre o lugar reservado aos negros. Pelo contrário, acho que servíamos para justificar estereótipos, como exceções que justificam a regra. Ou como exemplos de meritocracia bem sucedida. Em um país com a composição populacional do Brasil, ninguém estranhava uma turma com 130 alunos ter apenas 3 negros. Com as cotas, a coisa começou a mudar, e o cenário que eu vejo agora, mais de 15 anos depois do início do programa na UERJ e cerca de 10 anos depois em outras universidades é bem diferente. As turmas são muito mais diversas, não só racialmente, mas também em termos socioeconômicos. Claro que estamos longe de representar a realidade do povo brasileiro. Claro que enfrentamos o problema grave das fraudes nas cotas e precisamos da instalação de bancas de heteroidentificação para minimizar esse problema. Mas não há dúvidas de que isso está mudando. Temos hoje o potencial de formar médicos capazes de um exercício profissional muito mais próximo da realidade da maioria do povo brasileiro, porque vivem ou viveram essa realidade, têm pais que a viveram, ou tiveram em sua graduação a troca com colegas que a viveram.

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