Inovações sociais na pandemia: as contribuições das organizações negras

O corpo negro foi deixado para morrer! A quarentena tem cor preta da pele, do luto e da luta! O Brasil atravessa o pior governo da sua história, o que vivemos hoje é um verdadeiro desgoverno, que desenvolve um projeto genocida e irresponsável desde antes da pandemia, e se agrava a cada dia.

Faltam leitos nos hospitais. Falta água potável para uma grande porção da população brasileira. Falta oxigênio. Falta vacina. Falta comida. Falta humanidade. Falta solidariedade. Falta baianidade no Brasil. A prevenção à doença é um privilégio de poucos, restrito a quem detém recursos. Não existe preocupação com a doméstica, com o porteiro, com o motorista, com ninguém que não faça parte de seu seleto grupo social hoje no Brasil, daqueles que conseguem se proteger.

A seletividade alcançou os impactos causados pelo vírus, e com ela todos os resquícios de um passado escravagista que nos lembra diariamente o quão presente e estrutural é o racismo, que invisibiliza nossas dores, nossos nomes e nossas vidas, mas insistem em nos estampar nos jornais como vulneráveis, como se a nossa vulnerabilidade não fosse um projeto político.

A pandemia se tornou política e econômica, mas ela sempre foi social. Após quatorze meses de pandemia as mulheres negras continuam sendo o grupo mais atingido, uma vez que é atravessado cotidianamente pelas ausências e pela interseccionalidade das discriminações de gênero, classe, raça e outras formas de opressão.

Diante disso, diversas organizações e coletivos liderados por mulheres negras, país afora, tem sido desenvolvido inovações sociais e estratégias políticas de enfrentamento à pandemia e ao racismo por meio de apoio comunitário, sobretudo à população negra, ampliando a participação de mulheres e a capacidade destas de interferir e resolver os problemas em resposta ao desamparo político, social e econômico.

A população negra brasileira sempre enfrentou a ausência do Estado com soluções próprias. Na inexistência de creches públicas, mulheres acolhem as crianças de suas vizinhas. Contra a ausência de crédito ou em face dos juros extorsivos de empréstimos, grupos se unem para pagarem quotas mensais que são sacadas por cada um dos seus membros uma vez. Em face da insuficiência da assistência social e da emergência de problemas cotidianos surgem as vaquinhas. Na pandemia do coronavírus, não foi diferente. Sem atuação direta da União para a resolução de problemas públicos, a população negra, mais uma vez, criou saídas criativas para sua coletividade que têm todo o potencial para gerar novas políticas públicas nos próximos anos, uma vez que foram pensadas e executadas fora das amarras dos gabinetes. Vamos aos exemplos:

1. Cientes da ausência de estratégias nacionais de saúde pública voltadas para favelas, associações de moradores de vários lugares do país se vincularam a ONGs e instituições de pesquisa para prover ações de prevenção e mitigação de danos nos seus territórios. No Complexo da Maré, em Paraisópolis, no Aglomerado da Serra e em tantas outras localidades foram montadas estratégias variáveis, que vão da distribuição de máscaras, passando pela criação de locais para isolamento de doentes, distribuição de refeições diárias para os afetados pela doença ou pela miséria, testagem, teleconsultas, disseminação de informações pelo “zap”, etc. Ao defender seus moradores, as associações ampliaram os conhecimentos sobre seus próprios territórios, identificaram os mais vulneráveis entre todos e construíram uma sistemática de ajuda mútua que pode auxiliar o Estado, num futuro próximo, a repensar suas formas de oferta de serviços públicos, na crise e fora dela.

2. Posto o aumento da fome entre as famílias periféricas na esteira da redução do auxílio emergencial, a Coalizão Negra por Direitos lançou a campanha “Se tem gente com fome, dá de comer!”, a qual vem se somando a inúmeras iniciativas país afora, feita por indivíduos e organizações, para enfrentar esse problema. A campanha mapeou cerca de 223 mil famílias em todo o país, às quais se prevê a distribuição de produtos alimentícios equivalentes ao valor de R$200. Até o presente momento, foram arrecadados pouco mais de R$12 milhões de reais, valores esses que tendem a se elevar com a continuidade da ação. Com uma base de dados nacional e atualizada, a Coalizão Negra por Direitos tem agora a capacidade de propor uma agenda de renovação da assistência social que passe, em primeiríssimo lugar, pela atenção a essas famílias.

3. Dada a ampliação da vulnerabilidade econômica das mulheres periféricas, a Cufa criou a ação Mães da Favela. Por meio do auxílio a essas mulheres, entendeu-se que os resultados da assistência seriam multiplicados para suas famílias. Além da garantia de segurança alimentar e nutricional, a ação buscou garantir conectividade para as mães por meio da distribuição de chips e torres de wi-fi: sem internet, crianças não teriam acesso a conteúdo escolares e mães não teriam a possibilidade de trabalhar. Evidenciando a distribuição desigual do acesso à internet, a Cufa auxilia na exposição da relevância da internet como bem público, livre de cobranças.

Os exemplos são muitos, não se resumem a estes e pipocam por todo lado. Agora nos resta sistematizar esses esforços para que eles sirvam de lição para ampliar a democratização dos serviços públicos em um futuro próximo, e em todo lugar.

Este texto foi construído de maneira coletiva pelas líderes do Programa de Aceleração de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco, apoiadas pelo Fundo Baobá, que compõe a Coletiva Negras que movem: Clara Marinho, Lorena Borges e Mayara Silva de Souza.
** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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