Pontos de vista – Consciência negra na escola

O Brasil possui uma das maiores diversidade socioculturais do mundo. Todavia, a valorização de grupos étnicos pela sociedade ainda é baixa. Celebrado no dia 20 de novembro, o Dia da Consciência Negra homenageia as raízes africanas e a miscigenação presente em nossa cultura. Com tal realidade, em 2011 a Unesco declarou ser o Ano Internacional dos Afrodescendentes, auxiliando escolas e instituições a reconhecer a importância de trabalhar a cultura negra no cotidiano escolar. Conforme a lei federal nº 11.645, o conteúdo programático das escolas deve apresentar aspectos plurais da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira. Como a história da África e dos africanos pode ser indroduzida na Educação Básica? Como destacar o valor da luta dos negros no processo de formação do Brasil através da transdiciplinaridade? Para debater essas e outras questões, convidamos as especialistas Vanda Lúcia Praxedes e Telma Cezar Martins.

Arte: Romulo Arruda

A essência do Dia da Consciência Negra está bem longe de ser uma data comemorativa, que deve ser festejada e celebrada. Este dia pode ser um marco para representar a resistência de um povo que vem trazendo na sua história consequências de uma sociedade excludente, que por conta das “noções” de diferença entende que um povo é inferior a outro, por isso, pode escravizar ou excluir do sistema socioeducacional. Um dia, um marco, mas as ações de conscientização da comunidade escolar não podem se estabelecer apenas neste dia, mas devem firmar-se no cotidiano da escola.

Oportunizar o desenvolvimento de uma consciência negra na escola é possibilitar a reflexão de estudantes, sobre o porquê, o povo negro, após 120 anos da abolição do sistema escravista, ainda vivência um alto índice de violência, de exclusão educacional e, consequentemente, exclusão do mercado de trabalho de jovens negros e negras, comparado ao índice estabelecido aos jovens brancos.

Conscientizar, portanto, é ajudar a comunidade escolar a compreender que o Brasil é um país racista, e, por isso, precisa ter políticas públicas com recorte racial. Conscientizar é criar oportunidades para que a criança negra tenha sua identidade valorizada, a partir do seu corpo, que traz características específicas da sua etnia. Conscientizar é ter profissionais da educação sensibilizados e comprometidos com a temática do racismo na escola, não silenciados diante de ações preconceituosas, racistas, que minimizam a pessoa negra. Conscientizar é sair do espaço do evento que apresenta um estereótipo do povo negro, como aquele que dança e se alimenta de feijoada e tapioca e ir para o espaço da Cultura Africana e Afro-Brasileira que tem riquíssimas contribuições na Literatura, Arte, Religião, Política e outras áreas do conhecimento.

Este tempo de conscientização requer, no mínimo, dois movimentos: um para o interior da escola, olhando e erradicando todas as ações racistas e preconceituosas enraizadas e institucionalizadas no ambiente escolar e outro em direção aos sujeitos negros e negras que nelas atuam, oportunizando que estes sejam, de fato, protagonistas da sua história e participem de forma digna deste espaço que lhe é devido. Para que, simultaneamente, os resultados destas ações afirmativas e de reparo, atinjam o cerne da sociedade, impelindo-a a abolir essa desumana distinção de tratamento entre seus diferentes sujeitos.

Mestre em Educação, pedagoga, especialista em Educação Infantil (UMESP), coordenadora e professora do curso de Pedagogia na Faculdade Zumbi dos Palmares. Redatora da Revista Bem-te-vi, material de ensino religioso para crianças e pré-adolescentes.

Vanda Lúcia Praxedes

Depois de oito anos da sanção da Lei n.o 10.639/03, o lugar social da História da África e da cultura afro-brasileira como disciplina escolar ainda tem constituído um campo de tensões e disputas, resistências e rupturas no espaço escolar.

Nesse contexto, parto do pressuposto de que existe no universo escolar uma “tensão dinâmica”, que pode refletir de forma tanto positiva quanto negativa no conjunto de práticas pedagógicas, ações, projetos desenvolvidos no interior da escola. Vai depender do alcance e da compreensão do caráter político e educativo da Lei por parte dos gestores e dos professores.

Mesmo diante de avanços e recuos na implementação da Lei n.o 10.639/03 na educação básica, pesquisas recentes têm demonstrado que essa “tensão dinâmica” tem cada vez mais imposto uma profunda reflexão crítica sobre a prática pedagógica, especialmente por parte dos educadores que passam por cursos de formação na perspectiva da educação das relações étnico-raciais.

Têm apontado ainda para a necessidade de se criar novas formas de pensar e de conceber o ensino e o aprendizado da nossa história, de modo a romper com o eurocentrismo até então hegemônico na análise histórica.

Como afirma Ki-Zerbo, historiador africano, a história do continente e dos povos africanos deve ser compreendida na perspectiva de um “saber transformador”. Um dos caminhos possíveis para a construção desse saber transformador no cotidiano da instituição escolar seria a inserção da questão étnico-racial nas múltiplas propostas, nos projetos de ensino e em especial no projeto político-pedagógico de cada escola. Desse modo, a Semana da Consciência Negra em novembro seria o ponto de culminância de todas as atividades realizada ao longo do ano letivo, e não centradas apenas no mês de novembro.

Nessa direção, a “tensão dinâmica” refletiria de forma positiva no ambiente escolar, criando condições favoráveis para a superação do racismo na sociedade brasileira.

Doutora em História Social da Cultura. Professora da FAE/UEMG. Membro e Pesquisadora do Programa Ações Afirmativas na UFMG. Autora e organizadora de livros e artigos sobre história do negro em Minas Gerais, Alforrias, Gênero, Educação.

Fonte: Educa Brasil

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