Rap politizado mantém raízes e ecoa nos saraus

O rapper Crônica Mendes destaca a importância dos saraus nas periferias e analisa a nova geração do rap nacional. Para ele, estilo musical deve manter crítica politizada

José Francisco Neto

da Redação

A poesia que questionava o descobrimento do Brasil ou então o porquê do catolicismo ser a religião predominante numa terra indígena, fez com que o pequeno poeta Dequinha refletisse criticamente o conteúdo dos livros escolares. No entanto, aos doze anos de idade, quando teve o primeiro contato com a música rap, a poesia do garoto se transformaria em crônica musical da periferia.

Consagrado hoje no rap nacional com o vulgo que consolidou sua identidade com a música, Crônica Mendes ingressou no grupo A Família, em 2004. A partir daí, ficou nacionalmente conhecido após gravar as músicas “Brinquedo Assassino” e “Castelo de Madeira”, que retratam o dia a dia de quem mora na periferia. “O rap é o maior cronista da favela”, afirma.

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Hoje, aos 31 anos de idade, Crônica escreve poesias, contos e pensamentos sobre a música, as pessoas e o mundo. O rapper e compositor prepara seu primeiro álbum solo com a promessa de mostrar um lado diferente daquele já visto nos trabalhos com o grupo A Família. “Não é um disco futurista. Não é um disco antigo. Não é um disco moderno. É um disco atual acima de tudo. Simples e atual.”

Ao Brasil de Fato, Crônica Mendes falou sobre a importância dos saraus nas periferias, a nova geração no rap nacional, o funk e a relação entre o hip hop e a política. “Tem muito rap da moda que não tem compromisso nenhum com a política, isso me preocupa muito. Eu acho que o rap politizado tem que mostrar mais as caras.”

“Nova cara do rap”

Nos últimos anos o rap nacional vem passando por uma etapa de mudança, com novos grupos no cenário, novos estilos musicais, mas nem sempre com viés politizado. Crônica caracteriza essa mudança como um conflito de gerações, que já ocorreu com outros estilos musicais.

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Entretanto, ele ressalta que, por outro lado, há também outros grupos novos que não seguem essa linha, e mantém seu compromisso com os valores originais do rap. “Só que infelizmente tanto a mídia quanto o público preferem essa rapaziada mais nova que não mantém mais esse compromisso. Então eles são toda hora pautados por aí.”

Mas e o rap, Crônica, continua politizado? “Se eu falar pra você que o rap não continua politizado, eu tenho que parar de fazer rap, porque eu continuo fazendo rap politizado, o Gog continua fazendo rap politizado, os saraus continuam recebendo rappers politizados. Mas infelizmente as pessoas preferem pautar o rap que não faz isso.”

Literatura no Hip Hop

O rapper destaca ainda a importância dos saraus nas periferias. Crônica chega a afirmar que o sarau conseguiu injetar a literatura no Hip Hop, fazendo com que as pessoas começassem a ler mais e entender melhor o que é a poesia.

“O Hip Hop deve muito aos saraus e a literatura, porque no sarau a música rap fica nua. Ela deixa sua roupa, que é a melodia, e fica só a letra. Ficando só a letra, você pode observar melhor o corpo dela e o seu conteúdo.”

Caldeirão cultural

Se por um lado os saraus mobilizam as pessoas para fazer poesia e tomar gosto pela literatura, por outro, e que não dá para deixar de mencionar, é o funk, popularmente conhecido como “pancadão”. Questionável ou não, o fato é que ele tomou proporções gigantescas e, principalmente nas periferias, vem ganhando cada vez mais espaço.

O assunto é, no mínimo, polêmico. Recentemente, em entrevista ao Brasil de Fato, o poeta e idealizador do sarau da Cooperifa, Sérgio Vaz, disse que o funk é apenas o reflexo da ausência da educação pública na periferia. Crônica concorda e ainda acrescenta: “A gente não pode crucificar o funk. O funk não é culpado. Eles injetaram entre nós uma guerra de geração do rap e agora injetaram uma guerra de estilos musicais. Fica parecendo que o rap sempre precisa ter alguém pra bater.”

O funk, ainda de acordo com o rapper, está inserido no caldeirão cultural da periferia. Ele ressalta, sem generalizar, que esse estilo musical é o retrato de boa parte da juventude. “A gente tem aí um funk sem compromisso, a juventude descompromissada, o funk que esbanja ostentação, e uma juventude que não trabalha e não quer trabalhar. Quer só a gozolândia.”

O rapper, entretanto, finaliza dizendo que existem movimentos de funk que são conscientes, mas que não são pautados pelo público. “Assim como no rap, as pessoas só visam o funk que está ostentando.”

O rap e a política

E a participação política no rap? “Muita coisa se perdeu pelo caminho. Não foi só com o rap. Grandes movimentos da luta social se perderam pelo caminho. Quando a gente viu que um governo de esquerda assumiu o piloto da situação, a gente não sabia o que fazer e ficamos batendo cabeça durante muito tempo.”

Crônica ressalta a importância de o rap manter o compromisso com a política. “Tem muito rap da moda que não tem compromisso nenhum com a política, isso me preocupa muito. Eu acho que o rap politizado tem que mostrar mais as caras.”

Projetos e novo som

Além de todos os projetos que envolvem a música e a literatura, Crônica Mendes sempre esteve envolvido com atividades sociais. Na cidade de Sumaré, realiza por sete anos consecutivos a festa das crianças. Em São Paulo, Crônica está presente nas escolas e na Fundação Casa, com os projetos “Rap Na Casa” e “Hip Hop pela Educação em Ação”, que se estende também para o interior paulista.

Crônica disponibilizou, recentemente, na internet, a música “O Nome Dela”, de seu novo álbum solo. O conteúdo da letra aborda um dos temas mais comumente no hip hop: a favela. Segundo o rapper, foi um desafio enorme construir esta música, pois musicalmente é bem diferente do que ele já havia feito em sua carreira, por se caracterizar mais pela batida e não pela melodia.

“É hora de se reafirmar. É isso que eu falo na música “o nome dela”, se reafirmar, se reafirmar como favela.”

 

Fonte: Brasil de Fato 

 

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