Nina Simone foi uma mulher única em todos os aspectos da sua vida.
Enviado por Rodrigo Teles Medrado via Guest Post para o Portal Geledés
Nina percebeu ainda cedo o peso de ser uma mulher negra que luta por seus sonhos em uma sociedade racista e patriarcal como era o caso dos EUA (o mundo todo, na verdade) quando ainda era Eunice Kathleen Waymon, seu nome de batismo.
O fato de ser uma mulher negra foi decisivo em sua vida, ainda que se aplique a todas as pessoas pretas. Definiu sua música, seu gênio, sua vida particular, seu posicionamento político e até mesmo sua forma de tocar piano.
Sonhava em ser uma pianista clássica, a primeira pianista clássica negra, mas foi forçada a desistir do seu sonho para poder trabalhar, uma vez que cantar foi praticamente uma imposição. Isso a colocou em um caminho como intérprete e musicista que a marcaria para sempre na história da música.
Sua voz única emociona, inspira, faz rir e chorar, muitas vezes ao mesmo tempo e na mesma música, pois ela cantava o que vivia. Sua música era uma manifestação de sua própria vida.
Com uma personalidade forjada a força, sob as pancadas de um mundo violento que não a entendia, enfrentou o racismo com franqueza. Esteve nas marchas de Selma a Montgomery, identificava-se com o partidos dos Panteras Negras e defendia uma abordagem mais enérgica para combater o racismo nos EUA, país que abandonou, cansada de tanta dor e humilhação.
Sofreu retaliações por parte do Show Business, foi vítima de violência doméstica e rotulada como louca. Enfrentou um período de esquecimento até dar a volta por cima e entrar definitivamente para o panteão das Deusas artistas.
Sei que fiz um resumo grosseiro, embora apaixonado, de sua história, mas mesmo assim é inevitável dizer que sua vida daria um excelente filme.
Pois bem, este filme está em produção e deve ser lançado ainda em 2016, mas não sem antes causar muita polêmica. Justa polêmica, diga-se de passagem.
Alguns nomes foram especulados para viver Nina nos cinemas e, após alguns percalços, a atriz Zoe Saldaña foi confirmada para o papel. Percebe-se logo que olhamos para Zoe que ela não lembra em nada a Nina Simone, uma vez que ela é muito mais clara e não tem o mesmo fenótipo da personagem que irá representar, mas o choque só foi percebido quando o primeiro trailer (Trailer do filme) foi disponibilizado, onde a atriz aparece “transformada” para representar o papel. Zoe aparece no trailer com a pele escurecida artificialmente (blackface?) e com prótese de nariz.
Sou suspeito para falar da Zoe Saldaña, uma atriz que gosto muito e respeito. Está em muitos filmes de sucesso, incluindo Avatar, o maior sucesso da história do cinema, mas para esse papel é evidentemente uma escolha equivocada.
Em primeiro lugar, como escrevi antes, Zoe não se parece em nada com Nina Simone. Sua pele é muito mais clara, destoando completamente da personagem retratada, cujo tom de pele foi decisivo na construção da sua personalidade e carreira. O fato de ter sua pele escurecida e de usar uma infame prótese nasal evidencia esse problema.
Segundo, existe uma carência gigantesca de papéis para atrizes negras, tanto no teatro e televisão quanto no cinema, como a atriz Viola Davis expressou recentemente. Onde está Gabourey Sidibe, atriz indicada ao Oscar pelo filme “Preciosa”? Ninguém nunca se perguntou por que a própria Viola Davis não aparece tanto em papéis de destaque quando suas colegas brancas? Elas não aparecem porque não existem papéis para atrizes negras e quando aparecem são dados para as atrizes que estejam o mais próximo possível da estética branca.
E quando surge a possibilidade de fazer a cinebiografia de uma das mulheres negras mais icônicas da história esse papel simplesmente é dado para uma atriz que atende justamente os padrões pelos quais a Nina Simone era contrária. Quantos atores e atrizes surgiram para o grande público ao interpretar grandes personalidades?
Visibilidade essa que não falta a Zoe Saldaña, pois se enquadra em uma gama muito grande de papéis. Arrisco a dizer que ao aceitar esse papel Zoe pôs em xeque sua reputação com uma parte significativa do público desse filme.
Essa situação nos passa uma mensagem: Pessoas como Nina Simone não são aceitas em um filme, ainda que este filme seja sobre pessoas como ela.
Como Zoe poderá representar Nina enquanto a música Ain’t got no, ain’t got life é tocada e passar verdade com um nariz postiço? Como ela poderá representar uma mulher negra que luta contra o racismo fazendo blackface? Desculpe-me, mas o que vejo é blackface sim.
Que bom que vivemos num tempo onde isso não passa sem protesto, mas espero viver num tempo onde isso não existirá mais.
Depois de um documentário que deturpava a figura da Nina como foi o What Happened, Miss Simone?, acredito que essa artista inigualável merecia mais respeito no cinema.
What Happened, Miss Saldaña?
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