A gota de sangue – Luiz Eduardo Soares

A morte do cinegrafista da Band é uma tragédia e um ponto de inflexão no processo político em curso. Pela tragédia, me solidarizo com a dor de familiares e amigos. Quanto à política, esse episódio dramático é a gota d’água, ou a gota de sangue que muda a qualidade dos debates e das identidades em conflito.

Quebrar vitrines é prática equivocada, contraproducente e ingênua, mas compreensível como explosão indignada, ante tanta iniquidade e a rotineira violência estatal, naturalizadas pela mídia e por parte da sociedade. Mas tudo se complica quando atos agressivos deixam de corresponder à explosão circunstancial de emoções, cuja motivação é legítima. Tudo se transforma quando atos agressivos já não são momentâneos e se convertem em tática, autonomizando-se, tornando-se uma espécie de ritual repetitivo, performance previsível, dramaturgia redundante.

Os atos agressivos passam a ser a celebração narcísica da própria força, uma teatralização paradoxalmente impotente do ódio. As cenas se sucedem de modo a espelhar a brutalidade policial, realimentando o circuito destrutivo e autodestrutivo da violência, cujo simbolismo afirma o avesso da solidariedade, da fraternidade e dos valores gregários –corroídos pelos mecanismo vigentes de exploração capitalista.

Ou seja, a ritualização da agressividade, por parte de manifestantes, ecoa, reflete e reproduz o que pretende combater. Atos guerreiros instauram nas ruas uma linguagem monossilábica e fetichista que é a réplica grotesca do espírito do capitalismo. O vocabulário de atos agressivos é exíguo e o repertório de imagens, muito pobre –mero decalque do imaginário conservador do entretenimento midiático.

A prática de cooptação do PT esvaziou os movimentos e degradou a política. No vácuo da despolitização, ignorando as mediações, excitados pela legítima revolta contra as iniquidades e a brutalidade estatal, estimulados pelas manifestações de massa que mudaram a face do país, os grupos que insistem em adotar como técnica e tática a encenação da violência estão drenando a energia transformadora, desprendida na sociedade. Estão em marcha batida para o isolamento político. Seu destino é o gueto, a repetição de um enredo triste, auto-destrutivo e desagregador, mais do que conhecido. Atraídos pela visão do inimigo, reificam a volúpia da guerra e caem na armadilha desse velho game do poder: tudo começou com nossa denúncia de que o Estado, via polícias (e o sistema de justiça criminal, em seu conjunto), adotando visão militar, trata o suspeito como inimigo, criminaliza a pobreza e faz a guerra ao Outro. Hoje, os jovens que investiram na linguagem da violência têm um cadáver a sepultar e um caminho a rever. Eles estão militarizando o amor ao Outro e o sentido de fraternidade, que um dia entenderam como o avesso da ordem injusta que impera. Introjetaram a lógica do inimigo. Foram tomados pelo espírito que condenavam.

São inimigos de si mesmos. São cópias do inimigo que combatiam. Nesse sentido, foram vencidos. E não há pior derrota, nem mais radical.

Agora, repetem o horror que repudiavam, imitando os algozes que denunciavam. Atravessaram o espelho: com o rojão que mata em punho, aqueles que encenaram a violência converteram-se no avesso de si mesmos. São o outro, seus próprios inimigos.

Enquanto a história vira pelo avesso, O Globo comete um verdadeiro crime contra o jornalismo, procurando macular um dos homens públicos mais dignos e honrados de nosso país: Marcelo Freixo. Acusa-o, na capa, por interposta pessoa, e encerra o parágrafo com a indefectível sentença: “O deputado nega.” Isso não ocorreu por acaso: O Globo sabe perfeitamente que com a derrota dos grupos nas ruas e seu isolamento, com a desmoralização da linguagem da violência, o maior inimigo das iniquidades e da brutalidade estatal é a política, o espaço participativo em que as ruas e as instituições dialogam. Quem, no Rio, quiçá no Brasil, melhor do que Marcelo Freixo, hoje, representa essa via?

Tarefas que me atribuo: prestar solidariedade aos familiares da vítima fatal. Defender Freixo das calúnias e do cerco de que será vítima. Continuar dialogando com aqueles que ainda não se convenceram de que a energia precipitada em junho não pode perder-se no ralo dos guetos e da dramaturgia antiquada, previsível e essencialmente conservadora da violência. O ódio transformado em tática e técnica perde a legitimidade visceral de sua origem e se revela a mimetização especular do que há de mais nefasto na prática e na simbologia da “faca na caveira”, suprassumo da ideologia militar, autoritária e antipopular.

 

 

Fonte: Luiz Eduardo Soares

+ sobre o tema

“Dear White People” é a série necessária para um homem branco como eu

A nova produção da Netflix promove uma reflexão sobre...

Jovem de 16 anos é morta em crime homofóbico em Goiás, diz delegado

Adolescente Lésbica é assassinada em Goiás por Homofobia  ...

Inquérito da ONU equipara morte de Floyd com racismo da polícia brasileira

A investigação realizada pela ONU a partir da morte...

para lembrar

spot_imgspot_img

À espera da extinção da escravidão

Dia 13 de maio de 2024 completam-se 136 anos da assinatura da Lei 3.353/1888 pela então princesa imperial regente. Para além do abandono dos negros...

Uma supernova

No dia em que minha irmã nasceu, a Nasa fotografou uma supernova no universo. Quando minha irmã nasceu, foi uma das maiores alegrias da minha...

Número de crianças e adolescentes mortos pela polícia cresce 58% sob governo Tarcísio, apontam dados da SSP

O número de crianças e adolescentes mortos pela polícia aumentou 58% entre 2022 e 2023 — primeiro ano do governo de Tarcísio de Freitas (Republicanos) —,...
-+=