2014 – O ano em que o Brasil passou a enxergar o racismo

 

No final do segundo mês do ano, 2014 já se configura como divisor de águas na forma como o crime de racismo é visto no Brasil. Os casos têm um traço em comum, além das fragilidades jurídicas, a mobilização das pessoas em busca de justiça, notadamente por meio das Redes Sociais

Carlos Alberto Silva Júnior* – SEPPIR

 

No final do segundo mês do ano, 2014 já se configura como divisor de águas na forma como o crime de racismo (previsto na Lei 7.716/89) é visto no Brasil.

Em janeiro, os movimentos conhecidos como ‘rolezinhos’ causaram reações variadas. Recentemente, dois episódios ganharam notoriedade no Distrito Federal. Um envolvendo uma australiana, moradora de Brasília, que se recusou a ser atendida por uma mulher negra em um salão de beleza, chegando a ser presa. O outro, protagonizado por uma cobradora de ônibus xingada por uma passageira, em virtude da cor da sua pele.

Ambos encerraram peculiaridades que põem em xeque a capacidade do Estado de lidar com tal prática criminosa e desmascaram a figura do racismo institucional, também incrustado no aparato estatal, além da baixa resolutividade observada no âmbito legal.

Leis existem no nosso ordenamento jurídico e são suficientes para coibir, criminalizar e punir. A dificuldade  persiste no registro das queixas e na aplicabilidade da legislação.

Não são raras as vezes em que o crime é tipificado como injúria qualificada por motivo racial. Outra parcela tem na recusa dos agentes policiais a causa da falta de registro. Maior ainda é o número de vítimas desencorajadas a fazer o Boletim de Ocorrência, devido à humilhação a que são submetidas.

A australiana foi solta supostamente tendo cometido um crime inafiançável. Medida possível para os Tribunais, cujo entendimento é de que a gravidade do crime [de racismo], não basta à justificação da prisão preventiva, que tem natureza cautelar, e só se legitima quando a tanto se mostrar necessária no interesse do desenvolvimento e do resultado do processo. A Constituição Federal não permite punição sem processo.

Por outro lado, a cobradora teve seu pedido de registro de queixa recusado na delegacia, sob o argumento de que ali ‘havia mais o que se fazer’.

Também são emblemáticos os ‘justiçamentos’, nos quais a sociedade civil busca fazer justiça com “as próprias mãos”. Adolescentes negros, acusados disso ou daquilo, são agredidos, têm partes do corpo decepadas, são acorrentados em postes.

No Peru, o jogador de futebol Tinga é hostilizado ao tocar na bola, mas lembra a lida diária com o preconceito no Brasil. A presidenta Dilma Rousseff declarou apoio ao atleta nas redes sociais, classificou o ocorrido como ‘lamentável’, disse que o país inteiro estava #FechadoComOTinga, reiterou o desejo de fazer uma Copa sem Racismo e convidou o Papa Francisco para veicular mensagem de paz durante o mundial.

Dilma está comprometida com as políticas de promoção da igualdade racial. No final do ano passado, disse ter aprendido que a abolição da escravatura no país não significou a reinclusão para a maioria da população negra. “Atualmente, essa exclusão se dá principalmente por meio do racismo”.

Mais o racismo não para. Tivemos outra manchete na última semana: jovem é preso, acusado de assalto, psicólogo, funcionário de um shopping, ator em uma das maiores redes de comunicação do país e NEGRO.

Surpreendido pela ação policial e acusado de autoria do assalto pela vítima, ele foi preso em flagrante, mesmo sem portar o fruto do roubo, nem vestir o traje por ela descrito. Com uma intensa campanha na Internet, familiares e amigos alertaram para a arbitrariedade da prisão, revertida somente após 16 dias. Solto, o psicólogo tem que se apresentar mensalmente na delegacia.

Em todos os exemplos há um traço em comum, além das fragilidades jurídicas apontadas – a mobilização das pessoas em busca de justiça, notadamente por meio das Redes Sociais. “Quero acreditar que a sociedade brasileira esteja mudando. Na medida em que os atos de racismo ficam mais explícitos, também se torna inevitável a sua denúncia e o comprometimento das instituições para fazer valer a lei. Afinal, racismo é crime!”, disse recentemente a ministra Luiza Bairros.

É possível, assim, enxergar avanços inequívocos na consciência social dos brasileiros e vislumbrar alterações significativas no padrão predominante nas relações raciais vivenciadas no país.

Entretanto, a sociedade clama por tratamento igualitário. Não há como conciliar convivência harmônica e exercício de cidadania com a seletividade nítida do Poder Judiciário, se a negros e pobres, que padecem no sistema carcerário sem direitos e respeito a sua dignidade, é conferido tratamento diferenciado.

Avanços, há, mas ainda há muito por fazer.

*Advogado e Ouvidor Nacional da Igualdade Racial

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