Vamos ser claros: cada vida conta, cada ser humano que morre traz sofrimento para seus familiares e amigos e lembranças tristes que narram parte de sua trajetória no planeta. Em tempos de descaso com tantos que nos deixaram durante a pandemia, nunca é demais lembrar.
Mas a perda de crianças tem um significado adicional: trata-se, para além da dor sentida, de um potencial não realizado, um presente cheio de vivências e aprendizados iniciados que se interrompe, deixando aos pais e parentes uma horrível sensação de que os cuidados que deveriam lhes ser oferecidos foram insuficientes.
Numa de suas mais belas obras, A Peste, Camus relata a crise de fé de que é acometido um sacerdote – que dias antes associava uma epidemia vivida pela cidade argelina de Orã com um castigo dos céus, pela falta de empenho religioso da população – frente à sofrida morte de uma criança. Que divindade é essa que deixa crianças morrerem desta forma, depois de uma agonia tão penível?
Mas no Brasil, depois de diminuirmos a mortalidade infantil graças a boas políticas públicas inspiradas por dona Zilda Arns, matamos crianças todos os meses, não de doenças necessariamente, mas de balas perdidas ou nem tão perdidas. As disputas entre facções rivais em favelas e o engajamento de jovens – que a escola não soube incluir – no chamado mercado paralelo são complementadas, em poder de destruição de vidas infantis, com incursões policiais em territórios controlados por milícias ou pelo tráfico.
E essa é a história de tantos João Pedros, meninos e meninas que, na hora errada, no lugar errado, têm sua vida ceifada sem explicações. Os apressados tentam responsabilizar as vítimas, procuram identificar sintomas de práticas criminosas cometidas pelo adolescente em foco, que poderiam justificar a matança. Afinal, dói menos pensar assim.
O problema é que a consciência de cada pessoa que ainda não se desumanizou não aceita a explicação menos dolorosa. Sim, há culpados pelos tiros e eles precisam ser identificados, mas, ao fim e ao cabo, somos todos parcialmente os algozes de João Pedro e de tantos outros. Somos cúmplices quando normalizamos o assassinato de crianças, quando achamos que é aceitável olhar para as comunidades como repletas de suspeitos ou de membros de uma categoria que alcunhamos de “essa gente”, com costumes e folguedos distintos dos nossos e, portanto, não merecedores de dignidade e de direitos humanos que, pensamos, deveriam ser privilégio de um grupo restrito de pessoas do bem.
Mas matamos mais ainda os adolescentes quando consideramos que suas mortes são apenas danos colaterais de uma guerra contra crimes em que eles estariam provavelmente envolvidos – de que são culpados sem chances de se defender. Afinal, direito à defesa não é para “essa gente”, mas para nós, cidadãos de bem que, para completar, queremos nos armar para manter um status quo em que, dependendo da geografia e da origem social, a vida de crianças não conte.
Até quando?
Claudia Costin é integrante da Comissão Arns, professora universitária e ex-ministra da Administração.