Uma mulher à frente de seu tempo. Chiquinha Gonzaga revolucionou a música, enfrentou preconceitos, ensinou novas formas de viver e encarar a vida. É uma heroína brasileira.
Por José Carlos Ruy
É difícil saber qual foi a maior ousadia da carioca Francisca Edwiges Neves Gonzaga, inscrita com letras de bronze no panteão dos heróis nacionais como Chiquinha Gonzaga. Nascer? Divorciar-se? Levar a música das ruas para os salões da elite? Lutar pela abolição da escravatura? Defender os direitos autorais dos músicos e autores?
É difícil saber. Chiquinha Gonzaga foi filha de um militar de alta patente no Exército imperial e de uma negra. Seu nascimento em 17 de outubro de 1847 foi um escândalo – a família abastada do pai não aceitava aquela menina mestiça como parente e pressionou o que pode para que o pai, José Basileu Gonzaga, não reconhecesse a filha e muito menos casasse com sua mãe, Rosa Maria de Lima. Mas não adiantou – Gonzaga assumiu a filha e casou-se com Rosa, com quem teve outros três filhos.
Chiquinha já era do mundo da música desde criança e, quando casou-se – por pressão paterna – em 1863, aos 16 anos de idade, com o fazendeiro e oficial da Marinha Jacinto Ribeiro do Amaral, o presente de casamento do pai foi um piano. Um instrumento e um companheiro que logo despertou o ciúme do marido, ressentido da atenção daquela jovem ao instrumento que a encantava. Ele tentou separá-los e levou-a a uma viagem no navio que fretou em 1865 para transportar soldados e armas durante a Guerra do Paraguai. Adiantou pouco – na viagem, longe do piano, Chiquinha logo caiu nos braços de um violão, do qual não se separava. Ou ele ou eu, foi o ultimato do marido. Ele, foi a resposta da jovem esposa, que voltou para o Rio de Janeiro disposta a dar outro rumo para a vida; adiou a decisão ao descobrir-se grávida mas, assim que o bebê nasceu, abandonou Jacinto. Outro escândalo! Em pleno 1865, a punição da esposa abandonasse o marido era perder os amigos, o respeito, a guarda dos filhos, sendo atirada às agruras de ganhar a vida da maneira como pudesse.
A de Chiquinha estava na cara: era o piano. Deu aulas, animou festas domésticas nas quais tocava com conjunto Choro Carioca, tocava em lojas de instrumentos. Passou a escrever e publicar partituras; o primeiro sucesso veio quando tinha em 1877 (quando tinha 29 anos de idade) com o choro “Atraente”.
Naqueles anos envolveu-se com a campanha abolicionista contra a iníqua forma de trabalho da qual seus ancestrais foram vítimas, e também com a campanha republicana.
Um pouco antes, em 1885, ela havia estreado no teatro de variedades compondo a música para a opereta “A Corte na Roça”. E tornou-se então a primeira mulher a reger uma orquestra no Brasil. Ao longo da vida, que terminou em 28 de fevereiro de 1935, aos 87 anos de idade, ela compôs cerca de 2000 músicas para 77 peças teatrais.
Outro sucesso, em 1897, foi o Corta Jaca, que ganhou o Brasil na forma de difusão musical possível na época – as partituras para serem tocadas por músicos e grupos musicais.
Dois anos depois, em 1899, viria “Ó Abre Alas”, a primeira marcha feita especialmente para o carnaval. É um clássico tão conhecido que muita gente supõe tratar-se de música folclórica. Chiquinha compôs “Ó Abre Alas” depois de assistir a passagem sob sua janela, no Andaraí, bairro da Zona Norte carioca, do cordão Rosa de Ouro, que ensaiava para o carnaval. Inspirada no balanço da dança criou, naquele fevereiro de 1899, esta espécie de hino e certidão de nascimento do carnaval brasileiro. E também um gênero musical novo, a marchinha de carnaval, que passou a ocupar o lugar das polcas, habaneras, quadrilhas, valsas e mazurcas, que então animavam os bailes de salão. E também do zé-pereira, das cantigas de roda, árias, fados e por aí vai que o povo cantava nas ruas no carnaval.
A vida de Chiquinha foi além do teatro e do carnaval. Foi também a defesa dos direitos autorais, tendo sido a fundadora, em 1917 (quando tinha 70 anos de idade!) da SBAT – Sociedade Brasileira de Autores Teatrais, da qual é a sócia nº 1.
Teve também a ousadia de romper tabus. Em 1900 ela conheceu Nair de Tefé von Hoonholtz, a primeira caricaturista mulher do mundo e, depois, primeira dama do Brasil quando seu marido, o marechal Hermes da Fonseca, foi presidente da República (1910-1914). Tornaram-se amigas íntimas e Chiquinha passou a ser convidada para apresentações no Palácio do Catete, onde cometeu a heresia, para a época, de levar para aquele ambiente “refinado” o violão e os ritmos da rua, para desgosto da elite de então. Numa ocasião, em 1914, Chiquinha foi acompanhada ao violão por Nair de Tefé – um escândalo! Ritmos de negros, vulgares, que chocavam aquela elite racista, na residência do presidente da República! Era inaceitável para os preconceitos da época, e a polêmica correu solta nas altas rodas e no meio político.
Chiquinha Gonzaga, autora de canções célebres que residem no coração dos brasileiros foi uma lutadora, uma mulher avançada que não aceitava imposições. É uma heroína brasileira.
Leia mais:
Chiquinha Gonzaga
Para ler:
DINIZ, Edinha. Chiquinha Gonzaga: uma história de vida. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2005.
MUGNAINI Jr., Ayrton. A jovem Chiquinha Gonzaga. São Paulo: Nova Alexandria, 2005.
LAZARONI DE MORAES, Dalva – “Chiquinha Gonzaga – Sofri, chorei. Tive muito amor”. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1995.
Para ver e ouvir:
Ó Abre Alas
Fonte: Vermelho