Bahia no caminho do Rio

Facções criminosas disputam territórios na Região Metropolitana de Salvador

A crise de segurança pública que ora atormenta a Bahia guarda indesejável semelhança com a trajetória ladeira abaixo do Rio de Janeiro no enfrentamento ao crime organizado. A escalada de violência e morte que assola o estado do Nordeste repete o que o território fluminense experimentou e, sob a política dos confrontos a bala, só resultou em luto. O rastro de sangue não poupou ninguém. Alcançou criminosos, inocentes, agentes da lei. Ainda ontem, dois policiais militares morreram em Salvador; duas semanas antes, um agente federal. Apenas em setembro, os confrontos já deixaram mais de 50 mortos.

No ano passado, informou o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, a Bahia foi o estado brasileiro com maior número de mortes decorrentes de operações. Foram 1.464 óbitos, acima do Rio (1.356), mais que o triplo de São Paulo (419). A letalidade policial é termômetro de política de segurança ancorada na repressão ao varejo de drogas e trocas de tiros em favelas e bairros periféricos, em lugar do investimento em inteligência, que poderia interromper fluxo financeiro, interditar o acesso do crime a armas e drogas, combater a corrupção policial.

As mortes por intervenção de agente da lei, outrora chamadas autos de resistência, são uma dimensão da série de coincidências que aproximam a tragédia baiana da fluminense. No Rio, a brutalidade foi intensa a ponto de merecer atenção do Supremo Tribunal Federal. Na ADPF das Favelas, de 2020, a Corte determinou suspensão das operações em favelas durante a pandemia e, mais tarde, a elaboração pelo governo estadual de um plano de redução de homicídios e instalação de microcâmeras em fardas. Até hoje, nem uma nem outra resolução foi integralmente cumprida.

Na Região Metropolitana de Salvador, tal como no Grande Rio, facções criminosas disputam territórios densamente povoados e mal assistidos pelo setor público para, dali, administrarem o varejo de drogas ilícitas. Na Zona Oeste carioca, há confrontos fazendo aniversário. Anteontem, criminosos feriram três passageiros ao lançar, depois de um assalto, uma granada num ônibus em plena Avenida Brasil, altura de Barros Filho. Pretendiam supostamente incriminar a quadrilha rival.

Não é de hoje que há facções do Rio e a dominante em São Paulo se expandindo, Brasil afora, em aliança com quadrilhas locais ou aniquilando-as. Muitos grupos criminosos são comandados de dentro de presídios. Armas de guerra, tragicamente comuns em favelas cariocas, também chegaram à Bahia. Em 2023, a polícia local já apreendeu 48 fuzis. É mais que o dobro de todo o ano passado, embora um décimo do que as forças de segurança fluminenses recolheram até agosto de 2023.

A Bahia já convive com ônibus incendiados em reação às operações e à letalidade policiais, outro signo fluminense. Ainda ontem, dois coletivos foram destruídos em Duque de Caxias, na Baixada. Jornalistas estão usando coletes à prova de bala nas reportagens sobre a violência urbana. Conta-se às centenas o número de estudantes sem aulas em dias de confronto; estabelecimentos comerciais são impedidos de funcionar. Na semana passada, aportou na Bahia um navio com blindados da PF, conhecidos no Rio como caveirões.

— O que temos visto nos últimos anos na Bahia é o aprofundamento de uma lógica na segurança pública que o Rio gestou durante décadas. O crescimento de 300% na letalidade policial dá mostra dessa realidade. Vemos tanto o fortalecimento de grupos criminais quanto o surgimento de novos. Desde 2019, há no estado grupos com dinâmica muito semelhante a milícias, com participação de agentes e ex-agentes no controle dos territórios e de serviços. Enquanto o cenário criminal fica mais complexo, vemos as polícias descoordenadas e agindo com violência sem precedentes — diz Pablo Nuñes, coordenador de pesquisas da Rede de Observatórios de Segurança, que alcança sete estados (RJ, SP, BA, PE, MA, PA, PI).

O que a Bahia não pode é ser o Rio amanhã. Passamos por tudo isso e seguimos mergulhados na brutalidade e com o crime dando as cartas. Se, como declarou Ricardo Capelli, número 2 do Ministério da Justiça, “crime organizado não se combate com rosas”, tampouco é com chacinas. Autoridades baianas e o governo Lula têm a oportunidade de experimentar outra forma de enfrentar os grupos armados do tráfico e da milícia. Repetir o de sempre produzirá resultados já conhecidos. É hora de montar estratégia para asfixiar financeiramente as quadrilhas, equipar as polícias e coibir a corrupção de agentes públicos, rever o sistema carcerário. E impedir a chegada de armas e drogas que, como no Rio, não são produzidas nas comunidades dominadas e múltiplas vezes vítimas da barbárie.

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