‘Cartas’ entre Maria Helena Rodrigues e Amílcar Cabral em cena

Enviado por / FonteDo Noticias ao Minuto

A correspondência trocada entre Amílcar Cabral e Maria Helena, sua primeira mulher, constituem o universo da peça “Cartas”, que vai estar em cena na Escola de Mulheres, no Clube Estefânia, em Lisboa, de quinta-feira a domingo.

Na base desta criação, com direção artística de João Branco e Cátia Terrinca, estão as cartas, datadas de 1946 a 1960, trocadas entre Maria Helena Rodrigues e o líder da independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde, Amílcar Cabral.

Muitas das cartas deste período “perderam-se nas viagens, na fuga, na luta e no esquecimento”, observam os criadores, para sustentarem o facto de a peça pôr em cena “lacunas, os espaços entre o desfoque e a nitidez, o movimento da memória em direção ao corpo”, construíndo uma “recordação efémera de um homem e de uma mulher, na correspondência trocada entre eles”.

Por isso, ‘Cartas’ não é apenas um espetáculo-memória sobre dois seres, mas também uma revisitação ao imaginário de um amor imenso de um casal, ao qual foram impostas inúmeras barreiras e situações de ausência dolorosa, a que não foi alheia a luta travada por Amílcar Cabral pela independência da África lusófona, contra o colonialismo.

Nascido em 1924, em Bafatá, na então Guiné, atual Guiné-Bissau, Amílcar Cabral, filho de pais cabo-verdianos e cabo-verdiano de coração, fez o liceu no Mindelo, e fixou-se em Lisboa, de 1946 a 1952, onde estudou e se formou, trabalhou e se casou, com Maria Helena Rodrigues, uma portuguesa natural de Chaves, sua colega no Instituto Superior de Agronomia — onde o político estudou como bolseiro de 1946 a 1950 –, uma das primeiras mulheres agrónomas em Portugal.

‘Cartas’ baseia-se sobretudo nas cartas de Maria Helena a Amílcar Cabral. Mas é impossível assistir a este espetáculo sem pensar no livro “Cartas de Amílcar Cabral a Maria Helena. A outra face do homem”, editado em 2016, pela Rosa de Porcelana, e que acaba por desvendar facetas menos conhecidas do líder da guerra de libertação.

A partir das cartas que escreveu a Maria Helena Rodrigues — a primeira datada de 1946 –, é possível reconstituir a biografia e a história do homem a quem chegaram a chamar a “mais bela figura revolucionária” que África produzira.

O intervalo temporal acompanha o regresso à Guiné, em 1952, que percorre durante o recenseamento agrícola, segue o caminho que desembocará na luta armada e na fundação do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), assim como a sua permanência em Angola, onde acabou por ajudar a formar o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA).

E tudo se vislumbra nas cartas trocadas entre Amílcar Cabral e a mulher que foi também a mãe da sua filha, Iva Cabral.

Em prosa ou poesia, tudo de revela na obra com as missivas trocadas até 1960, quando o líder africano abandonou definitivamente Lisboa, mudando-se para Paris, onde Maria Helena e filha a ele se iriam juntar, seguindo-se África.

Data de abril de 1960, a última carta que Amílcar Cabral escreve a Maria Helena, em que diz “Tenho na algibeira a passagem para a viagem definitiva. Tenho também a ordem das passagens para ti e para Mariva [como chamava à filha]. Chegou, portanto, o momento de tomarmos algumas decisões fundamentais para o nosso futuro, para a vida”.

“O nosso caminho é sempre para a frente, e não podemos pensar em voltar para trás”, escreve Amílcar Cabral nessa carta, três anos antes de o PAIGC iniciar a luta armada pela independência, na Guiné Bissau, em janeiro de 1963.

“Eu tinha saudades de uma carta. Eu tenho saudades suas, acabou-se a tinta da caneta e aqui só há desta cor”, escuta-se na peça, numa recriação de uma carta que Maria Helena Rodrigues escreveu a Amílcar Cabral.

Maria Helena Rodrigues só viria a regressar a Portugal após o 25 de Abril de 1974. Fixou-se em Braga, lecionou na Universidade do Minho e morreu em 2005.

Amílcar Cabral foi assassinado em 20 de janeiro de 1973, por um seu guarda-costas, em Conacri, em circunstâncias ainda por esclarecer, impossibilitando o líder africano de assistir à independência por que tanto lutara, e que as Nações Unidas viriam a reconhecer ainda em 1973, cerca de um ano antes de Portugal o fazer.

O processo de trabalho de ‘Cartas’, uma criação coletiva, começou com uma residência artística no Mindelo, em Cabo Verde, com o apoio do Centro Cultural Português e da Academia Livre de Artes Integradas do Mindelo (ALAIM), a convite do Festival Mindelact, entre outubro e novembro de 2017.

A primeira versão da peça foi encenada por João Branco e apresentada em antestreia a 06 de outubro de 2017, no Mindelact, em coprodução com o Grupo de Teatro do Centro Cultural Português — Pólo do Mindelo (GTCCPM), de que o encenador é mentor e fundador.

Com dramaturgia de Celeste Forte e Sofia Berberan, que também assina a fotografia de cena, cenografia de Ricardo Guerreiro Campos, sonoplastia de José Bica e vídeo de Ângelo Lopes, “Cartas” é um projeto de UmColetivo e do GTCCPM.

Com desenho de luz e design gráfico de João P.Nunes, ‘Cartas’ tem representações na quinta-feira, sexta-feira e sábado, às 21h30, e no domingo (dia 08), às 18h00.

Em janeiro do próximo ano, de acordo com a companhia, a encenação de “Cartas” regressa a Cabo Verde.

+ sobre o tema

Johnny Alf

Alfredo José da Silva, o grande Johnny Alf, nasceu...

para lembrar

Pete Rock fala sobre racismo que sofreu na Europa

Peter Phillips (Bronx, 21 de junho de 1970), mais...

Escravidão ajudou a enriquecer a Suíça

O banqueiro Jacob Zellweger foi um dos financiadores do...

Uma homenagem da diáspora para Manu Dibango

A palavra “mano” não era uma palavra típica da...
spot_imgspot_img

A cidade de Lima Barreto: obra do escritor é reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial do Rio

Lima Barreto é autor do Rio. A frase soa óbvia, mas não se refere apenas ao fato de o escritor ser um legítimo carioca...

“O terreiro também é uma causa”, afirma o professor e babalorixá Sidnei Nogueira

Sidnei Nogueira é uma voz essencial no debate sobre intelectualidade negra, racismo religioso e a presença das religiões de matriz africana no Brasil. Aos...

Mais de 700 obras de arte afro-brasileiras serão repatriadas dos EUA para o Muncab, de Salvador, em 2025

José Adário tinha 11 anos quando, no final dos anos 1950, começou a aprender com um mestre o ofício ao qual dedicou sua vida...
-+=