Como a representatividade impulsionou o rap nas rádios para além da quebrada

“Hey, hey, hey, nego, você está na sintonia da sua Rádio Êxodos. Eu, DJ Nel, comandando o melhor da Black Music. São 23 minutos de um novo dia. O Japonês do Jardim Rosana manda um salve para o Zezé, pro Chiquinho, pro Kau, pro Ribeiro, pro Tico, Zulu e o Serginho. O Valtinho da Sabin manda um salve aí pro Vandão da Vila do Sapo, e a Kiara do Embu manda um abraço para a Viviane do Sadí. É! O Papau do Parque manda um salve pros manos da 50, e o Adriano do Tamoio manda um salve aí para rapa do Sujeito Suspeito do Paranapanema. E pra você que está pensando em fazer um pião, pegue seu bombojaco e sua touca, porque faz 10°C em São Paulo”.

Percebeu? Essa introdução da música “Da Ponte pra Cá”, dos Racionais MC’s, deixa claro como as rádios foram um marco no Rap Nacional. Então senta, que lá vem história.

Se você nasceu em qualquer quebrada antes dos anos 1990, talvez seu primeiro contato com o rap tenha sido ouvindo alguma rádio comunitária. Rádio pirata? Não, não é rádio pirata, é co-mu-ni-tá-ria. Ainda não entendeu? Então acompanhe a explicação do Black Blue, ex-produtor do Racionais MCs, na música “Todos São Manos”, do grupo RZO.

“Aê rapaziada, a rádio defende nosso povo da periferia. Ela se baseia em quatro princípios: solidariedade, companheirismo, cooperação e integração social. A rádio não visa lucro, não é religiosa, não discrimina cor, sexo, nem se envolve em atividade econômica e nem é antiprofissional. Ela organiza grupos comunitários. Toca o som da nossa gente; o samba, o reggae e o rap. E assim por diante, morô? Mas, também, ela discute e debate os problemas que afetam o povo da periferia. (…) Por isso, se sua rádio não for assim, se liga sangue bom.”

Faz sentido agora? Então fica fácil entender que esses pequenos veículos eram um meio da comunidade se comunicar por si mesma para ela mesma. E em muitas quebradas, até hoje, ainda é assim que as rádios comunitárias funcionam. E foi assim. Como o rap fala da periferia para a periferia, o casamento do estilo musical com as rádios comunitárias era óbvio.

Para as grandes rádios, no entanto, o rap não era uma coisa tão atrativa nos anos 1990. É o que conta Nuno Mendes, radialista da rádio 105 FM, autor do canal “É nóis na fita” e um dos fundadores do programa Espaço Rap, que está no ar há mais de 22 anos. “O rap nacional já estava consolidado na rua desde os final dos anos 1980, mas nenhuma rádio dava espaço. Com o surgimento do fenômeno Racionais MCs, com as músicas ‘Fim de Semana no Parque’ e ‘Homem na Estrada’, rádios que não tinham nada a ver com rap, como a Transamérica e Jovem Pan, que eram as rádios mais ouvidas da época, foram obrigados a abrir espaço para essas músicas. Existiam muitos pedidos dos ouvintes. E a 105 Fm também era obrigada a tocar, mas como nós tocávamos apenas essas dos Racionais MCs, para destacar aquele único rap do resto da programação, nós criamos uma vinheta chamada ‘Espaço Rap 105 FM’ que aparecia antes das músicas.”

Imagine que você está andando na sua quebrada, chupando um geladinho – ou sacolé, para os de fora de São Paulo -, de chinelo, bermuda e uma camiseta da Fubu – sim, esse sou eu nos anos 2000 – quando, na mercearia do Gilson – aquela em que ele deixa as caixas de som para fora da loja, para atrair os clientes – está tocando a rádio Transamérica. Ao som de 240 decibéis, acaba “Oops! … Did It Again” da Britney Spears e, do nada, começa, “Um homem na estrada recomeça a sua vida, sua finalidade a sua liberdade…”, você até para só para ouvir mais um pouco. Sim, essa é aquela coisa chamada representatividade, amigos. Que ouvimos tanto ultimamente.

E foi justamente esse sentimento de representatividade que ajudou o “Espaço Rap” a se transformar de uma mera vinheta para um programa de horas. Foi esse programa, também, que tornou a 105 FM uma das rádios mais tocadas nas comunidades de São Paulo.

“Ter esse espaço ajudou muito” diz Dj Bola8 do grupo de rap Realidade Cruel, formado em 1992 e em atividade até hoje, “somos de uma época que a divulgação era feita por panfletos na porta das escolas, saídas de bailes, divulgação com cartazes em A3 colocado nos postes, lambe lambe e etc. Era uma época mais difícil, mas era o que tínhamos para chegar com a nossa música na periferia e passar a nossa visão”, conclui.

“No fim do ano de 1997, na escala de fim de ano, nós pedimos para a direção para fazer um programa especial de Rap e usamos a vinheta “Espaço Rap” para dar nome ao programa. Era um programa de 30 minutos, sem pretensão nenhuma. Por coincidência, o diretor da rádio estava presente nesse dia do especial e percebeu que o telefone disparou. Lembrando que o telefone, na época, era o nosso termômetro instantâneo para saber se o programa estava indo bem ou não. Bom, foi isso. Foi ali que nasceu o Espaço Rap, primeiro com 15 minutos durante a programação e acabou aumentando até ocupar grandes espaços na grade da rádio”, relembra Nuno.

Mas mesmo com o programa se tornando um fenômeno de audiência, vale destacar que ele não virou o queridinho dos anúncios. “Tirem meu anúncio do programa dos rappers!”, dizia o titulo de uma matéria da Folha de S.Paulo, em 11 de fevereiro de 2004.

A reportagem mostra que o programa “Espaço Rap” tinha um 1,5 milhão de ouvintes por minuto. Era isso que mantinha a 105 FM entre as rádios mais tocadas na grande São Paulo.

O ibope consolidado, no entanto, não inseriu a 105,1 MHz na lista de poderosas agências de publicidade. O diretor-geral da emissora, Sérgio Pinesi, afirmou, na época da reportagem, que um dos principais motivos para a ausência dos anúncios era, justamente, programação de hip hop, que ia ao ar das‪ quatro horas da tarde à meia noite.‬

Como diria Ice Blue na música “Eu compro”, no disco Cores e Valores, de 2014, “o racismo é disfarçado há muitos séculos. Não aceita o seu status, nem sua cor”. Não importa a roupa que vestimos ou quão alto chegarmos, para os racistas; ainda seremos uma ameaça.

Foi por meio da influência do programa “Espaço Rap” que outros grupos do gênero tiveram força para surgir. Por apoiarem bandas como Racionais MCs, RZO e DMN, divulgando suas músicas em massa, outros grupos similares tiveram coragem para apostar na música e viver dela.

Hoje, o YouTube e as redes sociais têm dividido e até substituído, em muitos lugares, o poder de divulgação do rap. Muitas música e novos artistas agora nascem por ali, e não necessariamente nas ondas do rádio. Mas, cá entre nós, o Mano Brown como radialista da Rádio Êxodos, em “Sou + Você”, é melhor do que qualquer post de autoajuda do Instagram. “Bênção, mãe. Estamos iniciando nossas transmissões. Essa é a sua rádio Êxodos. Hey, hey. Vamos acordar, vamos acordar, porque o Sol não espera, demorou? Vamos acordar, o tempo não cansa. Ontem a noite você pediu, você pediu uma oportunidade, mais uma chance. Como Deus é bom, né não, nego? Olha aí, mais um dia todo seu. Que céu azul louco, hein? Vamo acordar, vamo acordar. Cabeça erguida, olhar sincero, ‘tá com medo de quê? Nunca foi fácil, junta os seus pedaços e desce pra arena. Mas lembre-se: aconteça o que acontecer, nada como um dia após outro dia”.

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