Como seria se a história fosse contada por nós?

Você já se perguntou qual o nome da “tia” do café, da limpeza ou da merenda da escola? Qual a trajetória de vida dessas mulheres? Como será que seria a história do Brasil se contada por essas vozes silenciadas? 

Carolina Maria de Jesus, de modo lindamente brutal, mas genuíno, conseguiu dentro da sua despretensiosa genialidade potencializar a voz da mulher periférica e negra. Não fosse sua partida, talvez teríamos um expoente de tantas outras vozes mais forte e, consequentemente, mais diverso. 

Do mesmo modo temos Conceição Evaristo, que com sua ‘escrivivência’, nos brinda com esse olhar sobre as vivências das mulheres minorizadas. (Vale a pena ler ‘Olhos D’Água’). Marielle Franco, na mesma linha, iniciou um protagonismo visceral e necessário, iniciado lá atrás por Benedita da Silva, que foi a única governadora negra do estado do RJ e que carrega consigo um legado que certamente irá ultrapassar as barreiras do tempo.

Mas ainda temos poucos espaços, nossas vozes ainda não são totalmente ouvidas. Ainda temos pouca representatividade, pouco protagonismo. Nesse ano tivemos uma queda significativa no número de parlamentares mulheres eleitas. Em contrapartida, tivemos a eleição de uma frente feminista muito forte, motivada pelas sementes plantadas pela vereadora Marielle. Mas ainda é pouco, ainda precisamos de mais, muito mais! 

Por esse motivo, ainda é necessário fazer recortes dentro do movimento feminista que sim, em linhas gerais, é macro e coletivo, mas abrange grupos distintos de mulheres, como as negras, as trans, as lésbicas, as índias, as faveladas que majoritariamente são classificadas como as tias do Brasil ou mais ainda, são invisibilizadas. 

Essas mulheres fazem parte de um nicho da sociedade que nunca teve voz, mas que sempre fez parte da base da pirâmide que impulsionou e impulsiona a economia brasileira. São elas que criam os filhos das patroas, enquanto os seus próprios filhos são deixados à própria sorte. São elas que movimentam o comércio informal brasileiro, usando a criatividade e inteligência para driblar os abismos sociais e econômicos que as separam das demais. 

Com base nesses dados, não consigo entender por qual motivo elas ainda estão às sombras dos lugares de protagonismo dessa narrativa? Quem ainda as silencia? 

Desde o movimento sufragista, onde as mulheres brancas saíram às ruas reivindicando o direito ao voto, as negras estavam em casa cuidando dos filhos das sufragistas que lá lutavam. O paradoxo dessa história é que as negras foram as últimas a terem o direito ao voto. Se a mulher é o segundo sexo, segundo Simone de Beauvoir, as negras se enquadram em que lugar nessa matemática quando na escala social estão aquém dos homens negros, que tiveram o direito ao voto anos antes delas?

Certamente este século será marcado pela luta feminina e sua efetiva emancipação. Acredito que nunca antes tivemos um coletivo feminino tão global e forte como agora. As gerações mais novas estão cada vez mais atentas e, diferente das nossas mães e avós, que não tiveram escolha, elas entenderam seu lugar de fala e não estão dispostas a abandoná-lo nunca mais. Conforme dito por Nuria Varela,nunca existiu no mundo um despertar feminino como hoje. E isso porque a mulher, em todo o planeta, começou a contar a história que nunca havia sido contada, que é a história das mulheres com suas lutas pela emancipação do jugo masculino. 

Em outras palavras, a história contada por nós, que nunca antes tivemos a possibilidade de falar e contar nossas vivências do nosso ponto de vista, tem o poder de transformar esse coletivo social. Afinal, alguém algum dia se preocupou em ouvir a história da faxineira, da copeira, da cozinheira? Aliás, será que as pessoas as percebem ali, fazendo parte desse da sociedade?

Nas palavras do jornalista Juan Arias: “ (…) as mulheres, incluindo as mais pobres e com menos acesso à cultura, por exemplo aqui no Brasil, começaram a contar suas histórias, as que lhes doíam por dentro sem que pudessem falar, as que dão medo nos homens, porque sabemos que são verdadeiras. São histórias de ruptura, de muita dor, mas também de orgulho de estar descendo da indiferença dos subúrbios para o centro das cidades, para gritar que elas existem e devem ser escutadas”. 

E são essas mulheres que, através da ruptura de barreiras sociais, econômicas e linguísticas, irão efetivar essa revolução feminina tão inflamada hoje. São elas que, assim como Greta Thunberg, Chimamanda Ngozi Adchie, Djamila Ribeiro, Joice Berth, Gabi  Oliveira ( Gabi de Pretas), Carol Anchieta, Luana Xavier, Stephanie Ribeiro, Viviane Duarte ( do Plano Feminino) e tantas outras mulheres que, aclamadas por Maya Angelou, se levantaram, iremos reescrever anos e anos de silenciamento, para que possamos ocupar espaços que nos foram retirados sem dó nem piedade. São mulheres como as tias do Brasil, que irão finalmente potencializar suas vozes, tão embargadas por anos, mas que carregam o DNA de luta e de bravura que nos move hoje. Afinal, somos as filhas (ou as netas) das tias que a sociedade não conseguiu silenciar!

Com cada fibra do meu corpo acredito nessa efetivação. Motivada pela trajetória de luta das minhas avós que viveram num mundo que não as enxergava, não as contabilizava como seres pertencentes da nossa estrutura social, apenas como as “tias da limpeza”, é que irei gritar e potencializar a minha voz, somando-a a milhares de tantas outras vozes que irão se expandir e forçar o mundo a nos ouvir e nos humanizar. 


** Este artigo é de autoria de colaboradores ou articulistas do PORTAL GELEDÉS e não representa ideias ou opiniões do veículo. Portal Geledés oferece espaço para vozes diversas da esfera pública, garantindo assim a pluralidade do debate na sociedade.

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