Atila Roque
– Fonte: BLOG DO INESC
A repercussão da decisão judicial que suspendeu o sistema de cotas no estado do Rio de Janeiro deixou em evidência o quanto é vergonhoso o massacre da mídia contra as políticas afirmativas. O debate foi simplesmente silenciado. Os contra as cotas, falam sozinhos, nem precisam mais enfrentar o contraditório; acusam, classificam, interpretam, fazem a caricatura do outro lado e dominam os principais meios de comunicação. Quando editores se dignam a dar uns dez segundos de espaço televisivo a alguém favorável escolhem a dedo a pior declaração, a mais estereotipada e virulenta, aquela que melhor “prova” o quanto os opositores tem razão em dizer que os defensores das cotas vão criar a divisão e o ódio racial.
Tudo isso a despeito de todas as avaliações qualitativas feitas até agora provarem justamente o contrário: as cotas trouxeram a diversidade para espaços universitários até então reservados majoritariamente a uma minoria advinda das escolas particulares de boa qualidade (e custo elevado) e de cor branca. Nem sinal do ódio e do “conflito racial” acenado como resultado inevitável de uma “racialização” tão temida por alguns. Assim como as avaliações também comprovam a excelência do desempenho acadêmico de alunos e alunas cotistas.
Uma boa parte dos críticos dessas políticas afirmativas nem se dá mais ao trabalho de discutir políticas públicas de igualdade e o quanto as cotas se prestam ou não a redução das disparidades sociais decorrentes do racismo insidioso e envergonhado presente na sociedade brasileira. Preferem repetir ad nauseum o mantra das políticas universais e a estigmatizar os estudantes cotistas como usurpadores do “direito” de outros. No embalo, aproveitam para retomar o elogio centenário da mestiçagem e da natureza residual do racismo no Brasil. E assim, simplesmente, descartam décadas de pesquisas que mostram justamente o contrário.
Buscam ainda desqualificar como sendo meros repetidores de modismos externos ou, pior, oportunistas financiados pelas fundações internacionais, movimentos sociais, intelectuais, artistas e outros segmentos da sociedade há mais de 60 anos engajados na luta antirracista no Brasil. Espero apenas que consigamos sair íntegros desse clima de “guerra santa” e trazer o debate para o campo da crítica racional e dialógica sem a qual é impossível avançar no aprimoramento das políticas sociais.
Finalmente, voltando à mídia, acho legítimo que os grande meios de comunicação tenham opinião e deixem claro o que pensam sobre assuntos importantes. Mas isso não lhes dá o direito de suprimir o debate sobre um tema que, sabemos, as pesquisas sérias demonstram, divide a sociedade brasileira.
Somente em uma democracia ainda precária como a nossa isso não causa escândalo. As raízes autoritárias do Brasil são muito mais profundas do que a sua aparência deixa vislumbrar. Sobrou para o consumo da audiência apenas a histeria e o sensacionalismo dos que veem fantasmas e monstros embaixo da cama. E de passagem engordam os egos de alguns que se aproveitam ao máximo para desfrutar do “momento celebridade” gentilmente cedido pela mídia.
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* Atila Roque é Historiador e membro do Colegiado de Gestão do INESC
Matéria original e foto: As cotas e a ditadura do pensamento único