Dia da Consciência Negra – ainda precisamos disso?

por: Ana Paula Maravalho

 

O ano é 2009. Segundo alguns calendários esotéricos, neste ano entramos na Era de Aquário, período de modificação da humanidade para melhor: “harmonia e entendimento, simpatia e confiança reinarão; não mais falsos e ridículos”, na letra do The Mamas and the Papas (para quem tem mais de 30…). Neste contexto, é fácil concordar com aqueles que insistem na inutilidade da comemoração de uma data como o 20 de novembro – afinal, já somos mais do que conscientes que o Brasil é o segundo país mais negro do mundo, que o tempo da escravidão já acabou, que o negro contribuiu historicamente para a construção do país, e todo esse blá-blá-blá. Ninguém aguenta mais as eternas celebrações com rodas de capoeira e batuques, as reivindicações pelo fim do racismo…ufa! Ainda precisamos mesmo disso?

 

Não terão sido suficientes os libelos dos negros que se revoltaram e reagiram à escravidão? Os testemunhos de vida das mulheres libertas que, desprovidas mesmo da condição de humanidade, ousavam ir aos tribunais reivindicar a liberdade dos seus filhos nascidos durante o período em que permaneciam obrigadas a prestar trabalho, em servidão condicional à liberdade por elas conquistada? A herança de cidadania e direitos humanos deixada por personagens históricos como Luiz Gama, João Cândido, a família Rebouças? A trajetória do movimento negro, do movimento de mulheres negras, em sua luta incansável por políticas públicas reparatórias da desigualdade racial? Será que não temos ações suficientes para que a Consciência Negra seja, efetivamente, algo que não necessite de uma data para ser lembrada, reivindicada, para se tornar algo tão naturalizado na prática do brasileiro quanto outrora o racismo o foi (para os que acreditam que “não somos racistas”)?

 

A julgar pelos acontecimentos que recepcionaram o 20 de novembro deste ano, no entanto, ainda estamos muito, mas muito longe mesmo, de prescindir da necessidade de reafirmar a luta de Zumbi e dos quilombos pela liberdade e igualdade. A televisão aposta na reedição das novelas retratando o tempo da escravidão (devidamente atualizadas, óbvio, o ibope assim exige), para levar aos lares a cena aviltante de uma mulher negra, de joelhos, olhos baixos, diante da senhora branca, espumando de raiva ao aplicar o golpe de misericórdia às pretensões de igualdade dos que ousaram um dia imaginar possível à tal negritude ocupar o lugar de direito da branquitude no reino onde o ideal de brancura é realizado plenamente. No Rio de Janeiro, o Sesc Madureira envia convite para evento celebrando a temática da Consciência Negra, com “café servido por mucama, lembrando os áureos tempos coloniais“. Em busca de informações sobre a agenda do movimento negro em Recife, uma jornalista bem intencionada se refere às raízes culturais “deles”, os afrodescendentes. Tudo isso aconteceu na mesma semana, com o mesmo objetivo de comemorar o Dia da Consciência Negra.

Ao falar da Consciência Negra, não estamos buscando impor os “nossos” significados, a “nossa” história ou os “nossos” heróis em contraposição aos significados, história e heróis oficiais. Estamos insistindo apenas em que o Brasil finalmente resolva tirar o pó-de-arroz, olhe-se no espelho e perceba que afrodescentes não são somente os mais de cinquenta por cento da população brasileira que se declara preta ou parda: afrodescendente é o Brasil, por mais que esta constatação faça espernear ou espumar em delírios esquizofrênicos aqueles que se consideram os últimos representantes da pura linhagem ariana. Para estes, ainda precisamos repetir, não sem alguma dose de compaixão pelo sofrimento e atraso evolutivo que impõem a suas almas divididas pela ilusão de uma branquitude à qual não pertencem:  a verdade dói, mas liberta.

 

Penso que ninguém mais que os ativistas do movimento negro gostariam de ver virada esta página. Que não precisássemos mais nos preocupar em discutir soluções para o racismo genocida brasileiro e pudéssemos, enfim, falar de outras coisas. Quem sabe, daquela “harmonia e entendimento, simpatia e confiança” prometidos para este Terceiro Milênio. Mas o tempo ainda é de quebrar pedreiras.  A nossos postos, então.

 

Viva Zumbi!

Viva Dandara!
Viva Palmares!

 

Axé para os que constroem o ideal da igualdade!

 

 

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