Documentário Une famille (Uma família): Incesto, silêncio e o pé na porta de Christine Angot

O documentário Une famille, realizado por Christine Angot, escritora francesa, é único e pioneiro no áudio visual. A realidade se impõe com tanta força que nos obriga a ver, a escutar e a abrir a porta de nossas casas. 

Christine foi violentada pelo pai quando havia treze anos, pai este que só a reconheceu como filha nesta idade, época em que passou a frequentar a sua casa, onde ele vivia com a madrasta e os dois outros filhos. A violência durou até os dezesseis anos da jovem menina e, por muitos anos, ela manteve o silêncio. Incesto é algo indizível ainda para muitas vítimas, sobretudo em sociedades onde este assunto é tabu, ou seja, todas. E vou dizer uma coisa que precisamos repetir: o silêncio guardado tem a ver com o silêncio imposto pela sociedade, pelas famílias. Tudo o que a vítima cala é precedido pelo silêncio ao seu redor. Christine demorou décadas para falar sobre o que lhe acontecera, inclusive, foi a escrita, o principal meio de revelação da violência. Um dos seus romances se chama, justamente, Incesto.

A coisa mais dolorida no documentário é que ela sempre buscou contato com a madrasta para falar do acontecimento, escreveu cartas, telefonou inúmeras vezes, por décadas, pois os abusos se passavam no mesmo teto em que a mulher vivia. E, com mais de sessenta anos hoje, Christine chamou uma equipe de dois assistentes, cada qual com uma câmara e foi bater na porta da viúva do seu pai, na cidade francesa Strasbourg. É este o momento mais duro, mais delicado, mais profundo e arrebatador do documentário. A mulher não quis deixá-la entrar e tentou fechar a porta na sua cara. Ela, então, colocou o pé e forçou a entrada, chamando para dentro as outras pessoas que a acompanhavam: 

-Entrem, entrem comigo. Eu preciso de vocês. Preciso ser apoiada por pessoas da minha confiança.

– Eu não quero falar, Christine, eu não quero você na minha casa.

-Eu preciso falar, eu preciso ter esta conversa que você ignorou por décadas.

-É a minha privacidade.

– Não, é a minha. E você é parte disso. 

Depois deste embate inicial a mulher cede e a chama para sentar-se. A conversa dura e crua continua na sala de estar. Christine interroga sobre os motivos dela nunca ter querido conversar sobre o homem com o qual viveu por anos. A mulher diz ser uma forma de se proteger, e proteger também os filhos. Angot rebate: “Eu precisei de proteção. Sou eu a vítima”. E, a senhora elegante prossegue: “Este homem que você me conta, eu não o conheci. Eu vivi com um homem muito inteligente, que eu admirava, era o amor da minha vida”. 

-Mas você nunca quis saber quem era de fato este homem, você ignorou isto.

-Não é que eu não acredite em você, mas ele não está aqui para contar a sua versão.

-Então, você não acredita em mim, se precisa da versão dele. Em todo caso, ele teria mentido. E você teria acreditado?

-Claro, era o meu marido.

Silêncio entre as duas.

-Christine, você tem que entender o quanto é difícil para mim julgar isso.

-Eu não quero que você julgue, eu fui violentada.

-Como eu deveria reagir depois de saber que você teve relações sexuais com o meu marido?

-Espere um pouco. Eu não tive relações sexuais com o teu marido. Eu fui estuprada pelo meu pai.

-Você teve relações sexuais…

-Eu não tive relações, eu fui violentada.

-Christine, é por isso que eu disse no início que eu tenho pena de você.

-Eu não quero a tua pena. Pena é um sentimento de superioridade moral. Não se coloque nesta posição com relação a mim. Eu não preciso disso.

-Christine, eu te entendo. Você não teve um pai que te amou.

Bem, a conversa continua ainda por um pouco. Pode ser que eu não me lembre de todos os detalhes. Mas, as duas percebem que não tem mais como continuar. Christine se levanta da sala e vai embora. A porta se fecha. 

Durante a conversa com a madrasta, em nenhum momento, a dor da vítima era o centro, mas o desconforto da mulher, da família, a proteção de outros membros, a memória do defunto violador, o amor que a madrasta nutria por ele e parecia querer conservar intacto. Nenhum reconhecimento da dor de Christine, ali, diante daquela mulher, irredutível. Nenhuma frase como: “Sinto muito pelo que ele fez com você”. 

Este documentário escancara uma dinâmica familiar que pode ser também brasileira, italiana, estadunidense, indiana, senegalesa, alemã, etc. E tem mais, a madrasta disse coisas que violentaram de novo a vítima. Como, por exemplo, exaltar as qualidades do abusador, como se ele fosse incapaz de tal atrocidade. 

Christine Angot está falando deste abuso, ou seja, incesto, e do silêncio da sociedade francesa há mais de 20 anos. É visível o seu cansaço, a sua luta, quando todo mundo lhe diz para mudar de assunto. Ela insiste, e não deixa ninguém esquecer. Nem o marido que lhe dizia para virar a página, com o qual foi casada por poucos anos, nem a mãe, nem um inteiro país. Quando ela falou pela primeira vez do incesto nos seus livros, alguns programas de televisão a convidaram para entrevistas. No documentário, vemos ela, jovem, séria, em um destes programas, cercada por convidados homens que fazem piadas com o assunto o tempo todo: “O pai colocou uma cereja no pênis e a pediu para chupar”. E todos caem na gargalhada, menos a jovem vítima ali, com a sua dor, sendo motivo de chacota em rede nacional. Era assim que a França tratava mulheres que ousavam falar publicamente, uma forma de desencorajar as outras. Ela se levanta do programa e vai embora: “Christine, você está com raiva. É brincadeira”, diz o apresentador, enquanto os outros machos se divertem ainda mais. “Eu não estou me divertindo”, e retira o microfone grudado na camisa e some. Um povo todo contra ela, apontando a sua seriedade, amargura, raiva e violência. Inclusive, em um Podcast recente, uma jornalista pergunta sobre a sua violência no documentário, referente ao pé na porta prestes a se fechar. “Porque eu sou violenta?” questiona, “eu fui violentada, não sou eu a violenta”.

 Mais de três décadas depois, ela, com o gesto de não deixar a porta se fechar e o silencio prevalecer, obriga o seu povo a entrar com ela na casa, a ver e a ouvir o que aconteceu.  É outra época, embora ela ainda seja chamada de violenta.  A sociedade está mais disposta a olhar. Ela conseguiu ser reconhecida como vítima do seu pai neste extraordinário trabalho. Ela, enfim, conseguiu. Uma vida de luta. Uma vida lutando contra todos. Ah! Christine, você não sabe que chutando aquela porta e forçando as mulheres da tua família a falar, você entrou em cada lar e ultrapassou fronteiras!

Na parte em que a mãe fala, de novo uma violência. A senhora idosa diz que, na época do acontecimento, não sabia de nada, mas sofreu com a ruptura com a filha, que se distanciou dela. Christine, corajosamente, enfrenta também a mãe: “Pro inferno se você sofreu com a ruptura entre nós. Se trata de mim, da minha dor e não da sua. Eu era uma menina.” A mãe, neste momento, diz: “Eu não tenho palavras para o que aconteceu”. E, de fato, ela foi sincera, as gerações que nos antecederam não tinham palavras, justamente porque era proibido falar. E, no final, a mãe lhe escreve uma carta. A reação da filha de não adocicar ou amenizar o silêncio da genitora, a obriga achar as palavras que lhe faltavam e, talvez seja isso que devemos fazer com as mulheres das nossas famílias.

O documentário é extraordinário, doloroso, mas uma dor que escorre e vai fluindo até ser aligeirada. Espero muito que cada mulher tenha forças para arrombar as portas de suas casas, como a diretora do documentário. O tempo do silêncio não se faz mais. E, como diz Christine, este crime, é um crime de poder. E o poder, a gente destitui juntas, com a voz e o pé na porta.


Fabiane Albuquerque e “Cartas a um homem negro que amei”. (Fonte: Arquivo FA)

Fabiane Albuquerque é socióloga e autora do livro Cartas a um homem negro que amei, Editora Malê.


** ESTE ARTIGO É DE AUTORIA DE COLABORADORES OU ARTICULISTAS DO PORTAL GELEDÉS E NÃO REPRESENTA IDEIAS OU OPINIÕES DO VEÍCULO. PORTAL GELEDÉS OFERECE ESPAÇO PARA VOZES DIVERSAS DA ESFERA PÚBLICA, GARANTINDO ASSIM A PLURALIDADE DO DEBATE NA SOCIEDADE. 

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