Dois mundos, uma realidade: Alexandra Loras, consulesa da França relata infância no gueto a menores infratores

Para Alexandra Loras, “potencial rebelde” dos adolescentes deve ser usado como talento 

no R7

Um portão. Dois portões. Um pátio grande em que é preciso acelerar o passo para chegar rápido até o próximo portão. Dentro dele, mais uma espera até que o terceiro portão se feche para que seja aberto mais um portão. Depois disso, é preciso andar mais um pouco. Mais um pátio. Esse tem pequenas salas que parecem caixas beges com portas e janelas amarelas. Porém, as portas e janelas não são como as de outras salas. As portas têm cadeados. As janelas? Apenas furinhos.

alexandra loras

Dentro de uma dessas salas uma mulher da elite conversa com cerca de 20 meninos que cometeram erros e foram parar na Fundação Casa. A cena é inusitada, mas os personagens desses dois mundos têm algo que os aproxima: a realidade de onde vieram. Na última terça-feira (24), a consulesa da França em São Paulo, Alexandra Loras, foi até o Centro de Atendimento Socioeducativo João do Pulo, na Vila Maria, em São Paulo, para dar uma palestra sobre racismo e meios de lidar com a discriminação racial.

Alexandra contou um pouco de sua história para os meninos e disse que “para ser bom, todos precisam da sombra”. Ela procurou incentivá-los a fazerem escolhas diferentes das que a sociedade impõe para eles. Segundo Alexandra, quando quis um lugar melhor, uma “voz interna” dizia que ela não poderia realizar os seus sonhos.

— “Você é negra, você é da periferia”. Quando comecei a lutar contra essa voz comecei a ter outros resultados. A sociedade tinha me marcado como mulher, como negra. Estou segura de que vocês têm a parte da rebeldia que é muito poderosa.

A consulesa nasceu na periferia parisiense e diz que tinha uma família “disfuncional”, mas se formou jornalista e cientista política e foi apresentadora de TV na França. De acordo com o membro da diretoria técnica da fundação José dos Santos Filho a presença de uma pessoa “de carne e osso” e que venceu mesmo frente às dificuldades faz com que os meninos tenham mais esperança no futuro depois de saírem de lá.

— Na medida em que eles olham uma pessoa negra, bonita, culta, um ser humano que venceu, mostra que o caminho é estudar e se valorizar.

De acordo com ele, a visita da consulesa faz parte do programa Quesito Cor, que discute questões relativas à diversidade étnico-racial dentro da fundação. O percentual de meninos negros que estão lá chega a quase 70%. Santos diz que é feita “uma série de atividades para que se resgate a auto estima dessas pessoas”.

Pensando nisso, Alexandra mostrou para os meninos que eles podem tentar mudar essa realidade imposta pela sociedade que já quer delimitar o espaço deles. Ela mostrou vários dados que comprovam como o racismo está enraizado na sociedade e como é difícil mudar essa realidade.

— Nós podemos fazer coisas para mudar nossa sociedade. É com essa geração que a gente vai mudar a sociedade. Vocês são o futuro da sociedade. Vocês já são líderes de opinião por não se colocar no sistema. Começa a enxergar que o seu potencial rebelde mostra o poder que vocês têm. Como você pode colocar nessa força, nesse talento, em um desafio que pode fazer parte de um plano?

Durante os questionamentos de Alexandra, os adolescentes se mostravam um pouco tímidos e com vergonha de fazer perguntas e interagir com ela. Porém, com o tempo, ela foi ganhando a confiança dos meninos, que faziam observações e perguntas de como fazer o programa de Au Pair, por exemplo, depois de a consulesa contar como foi sua experiência na Alemanha trabalhando como babá e ganhando seu próprio dinheiro aos 17 anos. O grande medo deles era não conseguir ser acolhido em uma família pelo fato de terem passado pela fundação. Porém, ela disse que isso não é nenhuma barreira para entrar na área e que é preciso apenas estar interessado e falar inglês. Aliás, a grande recomendação dela para os jovens foi a de aprender a língua.

— Eu já não aguentava mais minha família disfuncional, o preconceito. É um sistema de babás que tem também para os homens.

Outro momento em que os adolescentes se interessaram pela palestra foi quando ela disse que empresas francesas no Brasil estão procurando por diversidade em suas companhias. Olhando para os meninos e aproximando a mão ao coração, Alexandra disse: “eu quero ajudar vocês, mas vocês têm que me procurar”. Segundo ela, foi aberta uma “janela” para essa comunicação, mas eles têm que “correr atrás”.

— Não pensem que vocês não merecem. Somos iguais, somos iguais. Com nossa parte única, mas somos todos aqui já vencedores.

Alexandra mostrou para os meninos também como meditar para se sentir melhor, como se sentir “donos dos lugares” onde estão para não se sentirem diminuídos e como buscar inspiração em pessoas que podem ser seus pilares para uma vida melhor.

Depois da palestra, a consulesa disse que a atividade foi “um desafio” porque, segundo ela, existe uma diferença entre o que você imagina que vai encontrar dentro da Fundação Casa e o que você realmente encontra. Ela afirmou também que sentiu, no começo, uma resistência por parte deles, como se eles se perguntassem “o que ela vai falar aqui”?

— Foi desafiador, mas como meu pai foi morador de rua, meu irmão pequeno caiu no crack, eu nasci no pior gueto parisiense […] [Quero] mostrar para eles que também vim em uma família disfuncional. Eu sei que são pessoas e talentos. Rebeldes e líderes. Se eles chegaram aqui eles são contra o sistema. Não é tudo ruim. Ao invés de deixar eles se tornarem pior, a gente precisa dar apoio e empoderamento para eles saberem que eles têm chance.

Os meninos também ficaram bem animados com a conversa e saíram de lá falando que “foi muito legal ver uma pessoa de fora”. Um deles disse que gostou da conversa, pois Alexandra falou “um monte de coisa” que não sabiam.

Para a encarregada técnica, Teresa Lupianaez, a ida da palestrante “trouxe uma realidade que, para eles, não é vista”, pois eles “não acreditam que podem ter um futuro lá fora”.

— São adolescentes que não diferem dos meninos de casa. Os caminhos é que foram diferentes. Nós temos as mesmas dificuldades. Independente disso, existe um caminho diferente que a gente pode tentar.

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